No começo de abril, o balé se repetia: em estradinhas de barro ou às margens das BRs 232 ou 101, as duas grandes estradas federais que, uma para o interior, outra pelo litoral, cortam o Estado, homens, mulheres e crianças golpeavam o ar com panos nas mãos. Com panelas ou garrafas pet, abaixavam-se rapidamente para recolher algo impossível de ser visto a mais de um metro de distância. Dentro dos recipientes, montes de insetos se debatiam. Com as águas de março fechando o verão, não apenas o período das chuvas têm início em Pernambuco. É quando se dá também um dos fenômenos culinários mais remotos do Brasil. Hábito responsável por unir os paladares de antigos ameríndios coletores e urbanoides contemporâneos abastecidos por supermercados, a captura e consumo de formigas tanajuras têm seu auge entre abril e maio.
Tempo também de acionar, proustianamente, afetos e memória pelo paladar. “Me lembra logo a minha infância”, diz a cantora Bia Marinho, nascida em São José do Egito, Sertão do Pajeú, onde as tanajuras, tanto quanto parte do ecossistema, integram a paisagem cultural. “Sempre que chovia, a gente ficava atenta pra pegar as tanajuras. Sempre cantando o bordão, “Cai, cai tanajura, que teu pai já morreu de gordura”, ela lembra. Quando criança, Bia comia em casa, com a família e vizinhos, as tanajuras fritas na manteiga, puras ou com farinha. “A gente comia sempre no café da tarde. Depois, mais tarde, adulta, com uma cerveja geladinha”.
Ancestral e de origem remota indígena, o hábito de comer formigas não é exotismo de comunidades em que os ciclos da natureza são mais evidentes. Ainda em 2015, quando era dono do título de chef do nono restaurante mais importante do mundo, o paulistano Alex Atala incluiu no seu luxuoso DOM um menu completo ao custo de R$ 200 por cliente. Ao fim da refeição, era servido um cubo de abacaxi congelado com uma forma amazônica inteira, crua.
Atala conhecera o ingrediente durante suas viagens de pesquisas na Amazônia. “Uma senhora veio até mim e ofereceu uma tigela cheia de formigas. Eu achei o gosto maravilhoso, me lembrou gengibre”, disse, na época, o chef. Na mesma época, a hamburgueria Meats, do chef Paulo Yoller, 26 anos, oferecia um hambúrguer livre de gorduras e feito à base de vinagrete de formigas. Era, segundo o chef, uma forma de incluir uma brasilidade incontestável em seu cardápio. De refutar as fórmulas mais clássicas europeias.
A aparição das formigas com o início das chuvas, pouca gente lembra, sinaliza os rituais de acasalamento da espécie. Com pouco mais de uma hora de duração, as revoadas se dão logo após a estiagem – e diz o senso popular que, depois delas, as chuvas diminuirão. Os machos da espécie içá fecundam as fêmeas, chamadas de tanajuras, em pleno ar.
Para cada fêmea, há pelo menos dez machos em disputa. Após a cópula, os machos morrem. As fêmeas depositam ovos que darão origem a dezenas de novos insetos. De várias espécies: operárias, jardineiras e, únicas reprodutoras entre elas, as “tanajuras”. São também chamadas de rainhas, essas formigas rainhas.
Versada nas escolas clássicas francesa e italiana de gastronomia, a chef Sofia Mota chegou, uma vez, durante um congresso gastronômico no Recife, a dar uma aula sobre como preparar um cuscuz de mandioca com tanajuras fritas – apenas uma variação da iguaria que lhe acompanha desde a infância. Na propriedade rural de sua família, em Amaraji, tanajura é hábito antigo e certeiro de mesa. “Mas esse ano, elas não caíram por lá”, diz ela, ansiosa pelos frutos das próximas chuvas. “Quem pega sempre aparece lá no sítio pra vender”, ela diz, informando que a medida padrão de venda do produto chama-se frabe. Consta de uma lata de leite em pó cheia das formigas.
“Compramos a lata com elas vivas, dentro”, ela diz. O preço da iguaria custa entre R$ 50 e R$ 70. Quando fiz o prato para ensinar no congresso, batizei de cuscuz com caviar-içá. Afinal, mal comparando, uma coisa é tão cara quanto a outra”.
Para prepará-las, ensina Sofia, é preciso remover o ferrão com cuidado. O que resta – cabeça, tronco e, sobretudo, o abdômen – deve ser fervido em água. Depois de escorrer, a formiga deve ser frita em gordura, de preferência, manteiga. “Quem quiser termina de torrar com farinha para virar farofa. Em casa, a gente come pura, mas no interior, o povo come de todo jeito: com pão, inhame, cuscuz...”. Fritas, as formigas têm aparência que lembra milho de pipoca chamuscado.
As tanajuras são mesmo capazes, no Nordeste, de ativar afetos proustianos. Em seu romance de estreia O Filho Renegado de Deus, o escritor pernambucano Urariano Mota usa a iguaria como elo e símbolo de ligação afetiva do protagonista com a mãe, moradora de um cortiço: “No beco, havia cheiro de tanajura frita na panela com banha de porco. Que felicidade no cheiro, no antegosto, na prelibação daquelas pretinhas apetitosas com temperos de só maciez e bondade. Comê-las, antes de ser o fim da festa, era uma festa contínua que não cansava nem atingia o abarrotamento da exaustão. As tanajuras fritas se comiam, para o menino, como o justo coroamento de um trabalho de curumim, como se ele fosse um menino índio e livre, que caçava ao canto de “cai, cai, tanajura, tua bunda é uma doçura” (a rima era gordura, mas só queria dizer doçura).”