Se eu fosse o diretor Jaume Collete-Serra e a mim tivesse sido entregue a tarefa de realizar um filme sobre tubarão, iria pensar de imediato: “Ih! O que inventar sobre isso depois de que Spielberg nos entregou Jaws, em 1975?”.
O filme Águas Rasas (The Shallows, EUA, 2016), que estreia hoje em circuito nacional, de cara, já nasceu com este desafio. Considerável, diga-se de passagem, se levarmos em conta que todas as sequências ou imitações feitas desde então foram, no máximo, medíocres.
Vamos antecipar logo que Colette-Serra, espanhol radicado nos Estados Unidos, tirou de letra e mais um pouquinho, confeccionando um produto autoral, destemido, sem, contudo, destituir o projeto do que ele realmente pretende ser: uma produção para atrair multidões às salas de exibição, uma diversão de verão.
Em vez de rejeitar as referências Spielbergianas – e pretender ser incrivelmente genuíno – ele as abraçou e levou-as adiante, amparado por recursos tecnológicos impensáveis há 40 anos, incluindo uma fotografia de tirar o fôlego (particularmente nas cenas de surfe).
Se, em Tubarão(Jaws), a moça loura e anônima, numa breve aparição filmada de baixo para cima dentro d’água, dá a largada para o jorro de adrenalina prestes a ser despejado nas veias dos espectadores, em Águas Rasas o ponto de partida é novamente demarcado por uma desamparada figura feminina, só que, nesta trama, ela ganha nome, destaque e poder.
Nancy Adams, vivida por Blake Lively, é parte importante na excelente engrenagem posta em ação por Jaume Collete-Serra, tanto pela arquitetura da personagem quanto pela dedicação que a atriz empregou em construí-la .
Galega e longilínea, Blake se encaixa com perfeição no padrão da “wholesome girl” norte-americana, aquela garota que tem um estilo de vida sadio, manufaturado com comidas integrais, prática de esportes, amor pela natureza e uma singela crença na bondade dos seres humanos.
Fragilidade é o sentimento que o diretor deseja despertar na plateia, e que posteriormente será confrontado com o verdadeiro significado do que é força. Para pontuá-la, ele joga magistralmente com dois instrumentos.
O primeiro é a sensação de desconforto e ameaça que sentimos ao ver uma mulher sozinha em situações que, embora consideradas corriqueiras para os homens, são particularmente arriscadas para o gênero feminino (ser conduzida por um motorista do qual não se tem referência, surfar numa praia deserta, bater papo com caras desconhecidos). O fruto da opressão patriarcal cresce bem ligeiro dentro da gente: a toda hora, ao vê-la apenas existindo naquele que ela julga ser seu hábitat natural, pensamos que ela está prestes a ser importunada ou, até, estuprada.
O segundo artifício usado por Jaume Colette-Serra reforça o primeiro: sua câmara predatória literalmente “lambe” o corpo bonito de Blake Lively, numa atitude invasiva, voyeurística e desconfortável, para dizer o mínimo.
A narrativa segue o que se espera de um filme no qual o maior predador dos mares é chamado para interagir. Numa viagem exploratória a uma praia mexicana (o inferno está sempre no outro), a surfista Nancy Adams é premiada com a visão do paraíso. A partir daqui não é possível continuar sem dar spoiler, mas fica óbvio, desde o cartaz, que será travada uma luta de vida e morte.
O tratamento estético dado pelo diretor é um presente a ser aberto e apreciado com carinho. Algumas cenas (como a que Nancy se vê cercada por centenas de águas-vivas) lembram o apuro plástico de um Peter Greenway. As metáforas que ele introduz, para os que puderem perceber, são sutis e certeiras. Se a água é universalmente um símbolo das emoções que habitam em nós, controlá-la, dominando seus habitantes, é o suprassumo da definição do que é sobrevivência. E é disso que o filme trata.