Poucos eventos de cinema já tiveram uma edição tão complicada quanto a do 21º Cine PE - Festival do Audiovisual. Minado por uma crise político-econômica sem precedentes - sem dúvida, um retrato do Brasil -, o festival tem início hoje, às 19h30, no Cinema São Luiz, com o carimbo de um fracasso anunciado. Com dois adiamentos em maio - o segundo motivado por razões ideológicas, que levou à debandada de oito cineastas e sete filmes - e uma curadoria que deixou de observar o caráter de novidade inerente à programação, o Cine PE tem tudo para não interessar ao público. Afinal, nunca se viu um festival em que metade dos longas-metragens que concorrem em sua principal categoria já foi exibida no cinema.
Até mesmo Real - Plano Por Trás da História, de Ricardo Bittencourt, que abre i festuval abertura esta noite, já foi exibido nos multiplex. Lançado no dia 25 de maio - 15 dias depois do protesto dos cineastas, que o acusaram de ser uma propaganda política pró-Temer, a mesma acusação do documentário O Jardim das Aflições, do pernambucano Josias Teófilo -, o filme vendeu pouco mais de 46 mil ingressos. A comédia romântica Amor.Com, com Ísis Valverde, lançada 15 dias depois, já foi vista pelo dobro dos espectadores de Real.
Em todo caso, o clima de festa que ronda a abertura de um festival de cinema, aliado ao conhecido público do Cine PE - mais voltado para o glamour dos atores da TV Globo -, pode ser que redima a sessão do filme. Mas por Real, em si, certamente que não. Afinal, sua falta de ineditismo já é um ponto negativo. Mas isso, no final das contas, não diz nada a seu respeito enquanto obra cinematográfica.
Produzido no eco do impeachment da presidente Dilma Roussef, Real - O Plano Por Trás da História não conta, como o título leva a crer, apenas os fatos ligados ao plano econômico implantado no Brasil em 1993, durante o curto governo do presidente Itamar Franco. A surpresa do filme - talvez a única - é que estamos diante de uma quase biografia: toda a narrativa é focada sobre um único homem, o economista carioca Gustavo Franco, um dos pensadores do Plano Real, que esteve à frente do Banco Central e ditou a política econômica neoliberal do presidente Fernando Henrique Cardoso (Norival Rizzo) por mais de quatro anos.
Cineasta que acredita que o "cinema é pop", Rodrigo Bittencourt, cujo único crédito anterior era comédia Totalmente Inocentes, coloca todo o filme nas costas de Gustavo Franco (por sinal, defendido com garra por Emílio Orciollo Neto), em sua cruzada para tirar o País da hiperinflação. O perfil dele, criado quase com um anti-herói, é multifacetado, embora o filme reze numa cartilha um tanto esquizofrênica, com tiradas pontuais que acenam ora à direita, ora à esquerda.
O filme é propositadamente formatado como um produto industrial, com todos os cacoetes visuais do cinema de ação - há uma cena que apresenta a equipe econômica como os gângsteres de Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino. Muitas vezes, Real vira uma comédia involuntária, principalmente quando entram em cena alguns personagens verídicos bastante caricatos (o mais desastrado é o Itamar Franco de Bemvindo Sequeira, que parece estar atuando num esquete do Zorra Total).
Apesar de todos os atropelos, não resta dúvida que há um filme que tenta sair do amontoado de clichês e do jargão econômico dos personagens. Em algum momento, antes que os produtores decidissem que o filme deveria ficar totalmente centrado em Gustavo Franco, muita coisa acabou se perdendo pelo caminho.