O que você faria se fosse diagnosticado com câncer? Algumas pessoas escolhem viver melhor. É o que pretende mostrar o projeto Além da Cura, idealizado em 2013 pela cineasta pernambucana Bruna Monteiro e o artista plástico Vitor Maristane. Embora não tenha restrição de gênero, o projeto-documentário tem como protagonistas mulheres de vários lugares do mundo, que viram no câncer uma oportunidade de se reencontrar.
Beyond the Cure, em inglês, ainda está em produção e a expectativa é que o documentário fique pronto em 2019. Para isso, o projeto depende de doações e parcerias que viabilizem a mobilidade, hospedagem e outros custos com as viagens. Em 2015 foram arrecadados R$ 54 mil, mas, para continuar, o projeto precisa de mais ajuda.
Até o momento, a cineasta viajou para cinco países em busca de histórias que desconstruam o tabu do câncer. Foram entrevistadas 30 mulheres: 15 no Brasil em 2015, cinco na Europa em 2016, duas no Brasil e 10 na Argentina este ano. Alguns desses vídeos já podem ser assistidos na página do projeto no Facebook, outros só vão ser lançados no documentário.
A causa é nobre: nada de tristeza e pena, o objetivo é mostrar que o diagnóstico do câncer não é um atestado de óbito, mas uma certidão de nascimento. Através dessa certidão, várias mulheres podem encontrar uma nova forma de viver. A história de Bruna com a causa começa em 2013, quando ela descobriu que seu amigo estava com câncer. “Eu não sabia lidar com a doença dele. Eu simplesmente não sabia quando rir, quando ficar séria, quando mandar mensagem, quando não mandar”, diz a cineasta em entrevista ao Jornal do Commercio.
Em 2013 Bruna lançou o livro O Peso do Vento, para o qual entrevistou quatro mulheres com câncer, numa tentativa de buscar respostas para a situação nova com a qual se deparava. O objetivo inicial era falar de como a doença afetava a autoestima das mulheres, mas tudo mudou quando uma entrevistada contou à cineasta que se achava bonita, o mais difícil era a sociedade aceitar isso e parar de enxergar a pessoa com câncer como “vítima”.
A partir daquele momento, o Além da Cura nasceu com a proposta de quebrar o preconceito contra o câncer, mostrando que, acima de tudo, a vida é o que mais importa e não um diagnóstico. “Sabe um quarto escuro? Se você não sabe o que tem ali, você pode imaginar tudo. Então, o Além da Cura vem com esse objetivo de ligar a luz e dizer assim: é isso aqui. Por isso que a gente fala que é desmistificar o câncer e trazer um novo olhar sobre a vida”, diz a cineasta.
As filmagens são feitas depois de uma pré-entrevista realizada por Skype. Após essa etapa, a entrevistada pode escolher um local que se sinta mais à vontade para falar. Foi o caso de Romina Tóledo, de 33 anos, que mora em Córdoba, na Argentina. Ela descobriu que tinha câncer no final de 2007 e a partir de janeiro de 2008 começou o tratamento contra o tumor de mama. Romina não sabe dizer qual foi o momento mais difícil, porque, depois do diagnóstico, se viu em um mundo completamente novo. Ela descobriu o projeto Além da Cura [em julho deste ano, pelo Facebook, através de um anúncio deixado em um grupo feminista da rede social. Para ela, foi o momento oportuno para fazer com que outras mulheres conhecessem sua história e passar a mensagem de que todos podem se superar.
Outro caso foi o de Mônica Fidelis, de 34 anos, estudante de artes visuais na UFPE, que descobriu o câncer em 2014 ao fazer um autoexame. Ela conheceu o projeto Além da Cura em 2016, quando estava no Grupo de Apoio para Pacientes com Câncer (Gaapac). Apesar de não ter sido fácil, a artista lembra que foi fundamental o apoio dos amigos e da família, e teve que se acostumar com tanto acolhimento, lembrando que as pessoas se admiravam pelo fato dela “continuar vivendo”.
Durante a primeira quimioterapia, Mônica ainda usava uma peruca “curtinha e com a franja picotada”. Na segunda fase do tratamento, ela decidiu deixar o acessório. Hoje, os cabelos curtos e cacheados representam uma nova mulher, diz a artista. “A Mônica de 2016 já tinha se encontrado, já tinha um alicerce próprio independente de cabelo, já se reconhecia como essência e não como cabelo, como sobrancelha”.
Para Mônica, a sociedade ainda exige e espera da mulher com câncer uma postura de “guerreira” e “que você tem que fazer uma sobrancelha, ou tem que se maquiar pra não aparentar estar doente, pra você ter que colocar uma peruca ou um lenço muito bonito”, diz a artista. Para ela, a arte foi fundamental para se reencontrar, e foi em uma exposição que fez para o projeto que se reconheceu pela primeira vez como artista.
Ela relembra o momento: “Eu achava que não tinha nada, quando juntei, percebi que já tinha uma história sendo traçada”. Mônica também é formada em enfermagem pela Universidade de Pernambuco e mestre em Ciências Neurológicas pela UFPE, já tendo trabalhado na área de saúde. Agora, ela decidiu dedicar seu tempo ao que “vira seu pescoço na rua”, referindo-se à arte.
No momento, a cineasta Bruna Monteiro está no Uruguai, mas retornará à Argentina, onde fará algumas entrevistas para, em breve, chegar ao Brasil, onde muitas ações estão sendo planejadas.
O Além da Cura não é só um projeto de documentário. Bruna Monteiro, Estéfane Oliveira e os 15 voluntários fazem diversas ações que buscam estimular o diálogo e a comunicação sobre o tema. Muitas atividades já estão sendo preparadas para o Outubro Rosa que acontece todo ano.
O Além da Cura promove a campanha “Além do Rosa”. O nome não é por acaso, diz a cineasta: “Além do Rosa porque a gente acha que não deve falar do assunto só em outubro, mas durante todo o ano, porque a gente também não foca só no câncer de mama, mas em todos os tipos de câncer que envolvem mulheres. Também porque a gente acha que as mulheres não têm necessariamente que serem “rosa”, mas as cores que quiserem”. No dia 2 de outubro, acontece, no Cinema São Luiz, o lançamento do curta-metragem que traz entrevistas feitas com cinco mulheres na Europa. E, durante todo o mês, haverá shows, eventos relacionados à tecnologia e saúde, bazar, rodas de debate, além do tradicional desfile “Elas Vão Além”, levando empoderamento para a passarela.
Segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca), a estimativa é de 21.850 novos casos de câncer em Pernambuco para 2016-2017. Desse total, mais da metade ocorrerão em mulheres (11.610 casos). De acordo com a coordenadora de oncologia do Imip (Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira), Jurema Telles, a previsão nos países em desenvolvimento (incluindo o Brasil) é de aumento de 75% dos casos da doença até 2030.
Ainda segundo a especialista, a maioria dos resultados vitoriosos é vista em países “de primeiro mundo”. Com relação ao câncer de mama, por exemplo, 90% dos casos são de sobrevivência nesses países. Já em países “subdesenvolvidos” essa porcentagem desce para 45%.
A demora para fazer o diagnóstico é decisiva no andamento do tratamento, diz a médica Jurema Telles, lembrando que o acesso à informação é fundamental. Ela percebe que o estigma com relação à doença tem mudado, mas o medo ainda existe. “Eu acho que o que vai contribuir muito para a mudança é esse paciente se sentir empoderado”, confirma. E enfatiza a necessidade de fazer o autoexame e tomar as providências cabíveis. Além disso, o sistema público ainda não cumpre totalmente a “Lei dos 60 dias”, que determina um prazo de dois meses para início do tratamento depois de descoberta a doença. Para Jurema Telles, a demora do sistema e a espera dos pacientes, entre o diagnóstico e o tratamento, leva à perda de oportunidade.
Com relação à desigualdade nos papéis atribuídos aos gêneros, Jurema acredita que a dupla jornada feminina pode tornar mais difícil a doença para a mulher, já que os vários compromissos com casa e família, tradicionalmente atribuídos à mulher, além do trabalho, podem dificultar o autocuidado, essencial para a saúde.