Os anos de chumbo não acabaram. Mais de três décadas depois do fim da Ditadura Militar, os fantasmas da perseguição política ainda assombram com suas histórias de dor e desaparecidos. Agora, com o acesso à novas fontes de pesquisa, o véu que por tanto tempo encobriu a verdade de assassinatos e torturas começa a cair. O documentário Aurora 1964, que terá uma sessão especial, nesta segunda-feira (11/9), às 19h, no Cinema São Luiz, é o primeiro artefato audiovisual a se beneficiar extensivamente dos documentos liberados do extinto Departamento de Ordem e Polícia Social - Dops.
Além de longa-metragem, Aurora 1964 também vai virar uma série com exibição garantida nas TVs públicas. O projeto coroa um longo percurso de pesquisa do cientista político italiano Diego Di Niglio, 42 anos, também fotógrafo e que faz aqui seu primeiro filme. Radicado em Olinda há sete anos, Di Niglo estuda os movimentos de resistência política dos países latinos-americanos – como Brasil, Argentina, Uruguai e Chile –, que a partir da década de 1960 sofreram violências de órgãos de repressão política.
“O ponto de partida desse projeto foi o livro Marcas da Memória: História Oral da Anistia do Brasil, organizado pelo professor Antonio Montenegro, da UFPE, que permitiu uma nova forma de interpretar a história da ditadura. Inicialmente, parti de uma pesquisa fotográfica, em que buscava na contemporaneidade as marcas do passado. O acervo do Dops–PE, disponível no Arquivo Público, é a segundo a ter os documentos liberados para consulta depois do de São Paulo”, explica o cineasta, nascido em Milão.
Graças ao material do Dops–PE, pela primeira vez o público pode ver fotografias e pertences dos militantes que perderam a vida nas dependências do lugar, situado nos fundos de dois prédios históricos da Rua do Aurora. Com acesso também às gravações da Comissão de Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, Diego reconstitui as agruras de Odijas Carvalho de Souza e Anatália Alves de Melo. Estudante de Agronomia, o alagoano Odijas foi torturado no Dops–PE e morreu no Hospital da Polícia Militar de Pernambuco, em 1971. Dois anos depois, a costureira potiguar Anatália, que era casada com o militante do PCBR Luiz Alves Melo, foi encontrada enforcada no banheiro do Dops–PE, em condições ainda não esclarecidas.
“O material é muito forte e fiquei impressionado porque ele parece novo depois de mais de 40 anos que estava guardado numa caixa. Além disso, essa impunidade contou com a conivência da imprensa. Nada saía nos jornais locais, só a jornal O Estado de S. Paulo publicou alguma coisa sobre a morte deles”, revela Diego, que também está trabalhando num livro onde recupera a memória fotográfica do período, com material do acervo do Dops-PE, e que deve ser lançado ainda este ano. Os dois projetos foram aprovados pelo Funcultura.
Outro personagem desaparecido com bastante presença no documentário é o recifense Fernando Santa Cruz, desaparecido no Rio de Janeiro depois de preso e que até hoje não se sabe o paradeiro do seu corpo. Desde 1974 que a família de Fernando luta para descobrir onde o estudante teria sido enterrado. No filme, o ex-vereador de Olinda Marcelo Santa Cruz mostra, ao lado da irmã, dezenas de documentos pessoais de Fernando, esperançosos para fechar o ciclo da vida do irmão desaparecido.
Mas não são só os mortos que buscam justiça em Aurora 1964. Di Niglio conseguiu arregimentar um grupo de vítimas e militantes que viram de perto a repressão desde o Golpe Militar, em 31 de março de 1964, tanto no campo quanto na cidade. Com depoimentos de Jomard Muniz de Britto, Jarbas Araújo, Anacleto Julião, Geraldo Menucci, Maria de Lourdes da Silva, Zito da Galileia e Nadja Brayner, entre outros, o documentário lança luzes para os 21 anos de trevas que cobriram o País.
Em meio a melancolia de um Recife acizentado, Di Niglio escolheu as músicas do Ave Sangria para a trilha sonora daqueles tempos duros, mas ávidos por liberdade. Nada mais justo.