A doutoranda em Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Lenise dos Santos Santiago pesquisa pelo menos desde 2004 a obra de João Cabral de Melo Neto. Um de seus artigos, A linguagem prosaica da poesia cabralina, fala das particularidades poéticas dos versos do autor pernambucano nos poemas Morte e vida severina, Cão sem plumas e O rio. Leia abaixo a entrevista com a pesquisadora.
JC - É possível colocar os rios - e especificamente, o Rio Capibaribe – como um tema (e uma poética) de destaque na obra de João Cabral? Por que? Existe um motivo para um poeta tão apontado como mineral ser atraído pelo tema do rio?
Lenise Santiago - Quando João Cabral afirma no poema Autocrítica, da obra Escola das facas, que “Só duas coisas conseguiram (des)feri-lo até a poesia: O Pernambuco de onde veio/ e aonde foi, a Andaluzia”, esses versos autenticam sua identidade, ou seja, sua metáfora poética e esta metáfora está basicamente concentrada em dois signos reais: o sertão pernambucano e a Espanha andaluza. No entanto não podemos ignorar que sua poesia pernambucana é formada por signos tanto do sertão quanto urbano nos quais esta incluído, em especial, um determinado “rio” onde trafega toda a história desumana do sertão à miséria dos ribeirinhos recifenses. Afinal esse é o trajeto do personagem Severino.
“Poeta mineral”. Esses adjetivos com que a crítica se empenhou para definir a poesia de João Cabral para mim são muito complicados, eu não sei conceber essa definição de “poeta mineral”, parece até elegante, diferente, mas é preciso lembrar que o minério pedra, na linguagem cabralina, se transforma em água mineral e das boas.
JC - Nos três poemas (Cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina), João Cabral trata o rio não como um elemento da geografia física, mas como uma parte da geografia social e, ao mesmo tempo, também um elemento humanizado. Como esses três aspectos se fundem para passar a imagem de um rio? Como essa sucessão (e sobreposição) de imagens reflete a visão do poeta do rio?
Lenise - É bem evidente que as obras em referência acomodam uma tensão temática coletiva e percebe-se que os signos poéticos: o cão, o rio e o homem mantém uma relação de traspassamento em que todos eles sincronicamente compõem uma extensão de suas imagens descritas como espessas, densas e estagnadas. A imagem do homem caranguejo que se confunde com os elementos do mangue é muito forte e intrigante, como dizem os versos cabralinos: “Difícil é saber se aquele homem já não está mais aquém do homem”. Josué de Castro e Chico Science não poderiam dar uma explicação melhor.
Bem, creio que a relação isomórfica entre rio e homem se configura como metáforas de realidades sociais desvalidas. Veja bem, tanto o rio Capibaribe quanto o personagem Severino ambos são sujeitos da mesma marca sociológica, por isso estão sempre se mirando, um é a voz do outro, se completam e não se traem. O poeta faz essa afirmação quando nos lembra que “ O rio sabia/ daqueles homens sem plumas.” E, é essa marca de vida dessublimada que os une numa poética de travessia, pois a não perspectiva de vida dos severinos-rios ressoam os questionamentos próprios do ser humano, sem definição de espaço geográfico e temporal. (em qualquer lugar, em qualquer tempo).
JC - No artigo A linguagem prosaica da poesia Cabralina, você fala da recorrência do adjetivo "espesso" para se referir ao Capibaribe em Cão sem plumas. Em que sentido (ou sentidos) o autor utiliza esse termo para definir o Capibaribe? Que outros termos ou expressões (como o próprio título do poema) você considera que se destacam como fortes para descrever a relação de João Cabral com o rio?
Lenise - Essa imagem “espessa” do objeto poético ela é muito sensitiva e depurada, provoca, de fato, um efeito sinestésico que incomoda e instiga o leitor a uma leitura sociológica. Veja os versos: Entre a paisagem/ o rio fluía/ como uma espada de líquido espesso. /Como um cão/ humilde e espesso. Já imaginou um cão sem plumas? Aliás, um cão tem plumas? Não tem. Mas essa expressão “sem plumas” remete a imagem de um cão sarnento desprovido de cuidados e beleza canina. Assim é o rio pernambucano, assim é o homem cabralino ambos sem adornos, conscientes de sua escassez material, no entanto politizados, refinados. No poema há os seguintes versos:“O homem,/ porque vive,/ choca com o que vive./ Viver/ é ir entre o que vive” parece-me que isto demonstra o nível de intelectualidade do objeto poético.
Se o título do poema não fosse Cão sem plumas poderia ser Viver é ir entre o que vive chocaria menos, mas seria lírico por demais e consequentemente não seria cabralino.
JC - Qual papel a linguagem prosaica assume nos seus poemas sobre o Capibaribe? É uma forma de localizar o rio também no cotidiano da fala dos que o rodeiam?
Lenise - O rio não precisa ser localizado, ele está ali presente. Não é o rio que procura o homem. O homem é que busca o leito do rio para chegar ao mar. Lembrando que o rio é um personagem narrador etnográfico, ele só dá voz ao homem quando este resolve tomar as rédeas do seu destino. É o que acontece em Morte e vida Severina – Severino passa a ser a voz do coletivo, é ele que dá o desdobramento do discurso e de forma cinematográfica descreve o ambiente humano, físico e social. Para essa voz soar de forma clara e objetiva, a linguagem prosaica, que na obra cabralina é proveniente do cancioneiro popular, serve aos artifícios poéticos para compor o discurso do rio.
JC - Sei que o doutorado ainda está em progresso, mas queria saber se você poderia explicar um pouco sobre sua pesquisa da relação das matizes hispânicas na obra de João Cabral e também um pouco sobre a estética do avesso do autor, tema da sua dissertação.
Lenise - O tema do doutorado surgiu das leituras dos poemas hispânicos composto por João Cabral e também das declarações do próprio poeta sobre suas influências literárias. Como a Espanha está muito presente em sua obra, resolvi procurar o “lirismo” negado, questionado e oculto que Cabral tentou “dissimular” com a sua proposição de fazer poesia às avessas. Gostaria de lembrar que não se trata de um documentário sobre as experiências literárias e de vida do poeta, mas a busca do lírico cabralino.
A estética do avesso foi uma tentativa de encontrar “barroquismo” na peça-poema Morte e vida severina – auto de natal pernambucano, obviamente que esse tema não foi explorado pelo conceito teórico do Barroco e sim por signos poéticos que acomodassem essa temática. Bem, a missão acadêmica foi cumprida, mas esta não é mais a minha proposta de estudos literários.