Ecumênico, aberto a tudo, rigorosamente tudo, que fosse humano, Gilberto Freyre teve seu paladar pessoal criticado pelo poeta e conterrâneo Manuel Bandeira. Como podia um regionalista exacerbado – o sociólogo que, para horror da positivista inteligentsia pátria, chamava a atenção para a importância do açúcar e da mesa na formação do Brasil –, dedicar um gosto tão entusiasmado por bifes à inglesa, patês, salmão? Pelos pratos que aprendeu a gostar nas viagens de formação feitas pelo mundo. Que espécie de regionalista era aquele?
Essa passagem biográfica, apenas aparentemente contraditória, diz algo do homem que, pioneiramente, alimentou-se também da comida no seu projeto de codificação monumental da identidade brasileira e, não por acaso, marca um dos capítulo do novíssimo Gilberto Freyre e as aventura do paladar. Com lançamento amanhã pela escritora e pesquisadora Maria Lecticia Cavalcanti, que já nos ofereceu a referencial compilação de receitas sociologicamente situadas de História dos sabores pernambucanos, o livro mostra o Gilberto Freyre mais sociológica e pessoalmente imbricado com a cozinha que já vimos. Fruto de cinco anos de pesquisas, releituras e ilações, o volume chega com status superlativo de obra definitiva sobre a relação do sociólogo que reinventou o Brasil com a alimentação.
“Nos estudos que fez sobre o Brasil, passamos a compreender, cada vez mais, como se relacionam os habitantes desta terra e seus alimentos”, diz a autora. É um livro poligâmico, multifacetado. Ainda que fosse tão somente a cuidadosa compilação de citações, a obra seria a mais extensa que temos. Incansavelmente, a autora reuniu nada menos que 1.300 referências de Freyre à alimentação em seus 78 livros, apresentadas de uma maneira clara, didática, enciclopédica. Assim, por exemplo, podemos rapidamente localizar aquela algo polêmica afirmação do autor em Casa-grande & senzala, de que “o escravo negro no Brasil parece-nos ter sido, com todas as deficiências do seu regime alimentar, o elemento melhor nutrido em nossa sociedade patriarcal”. Assim, o leitor pode conhecer o pensamento de Freyre em sua própria dicção.
Mas o volume de 428 páginas, edição da Fundação Gilberto Freyre, diagramação leve, bem ilustrado, é mais que simplesmente o somatório dos aforismos do mestre. Em suas páginas, encontramos também as características fundamentais da autora Maria Lecticia: a pesquisa gulosa, a capacidade de não se conformar com as primeiras informações óbvias; a disposição investigadora de ir além do retrato mais fácil. Um texto que, talvez influência inevitável de seu objeto de estudo, traz também uma das marcas mais fortes das narrativas de Freyre: o imagismo. Como o sociólogo, Maria Lecticia evoca cheiros, lugares e sensações para que a leitura materialize imagens mentais.
“Os cheiros e sabores desempenham papel importante na composição dos seus textos, algumas vezes usados apenas para enriquecer a descrição de uma cena. Outras vezes, para explicar um pensamento ou uma ideia, usando palavras como delicioso, com as quais, segundo ele, “se conseguem milagres”, discorre a autora.
Retrato multiangular, a obra apresenta tanto as análises de Maria Lecticia sobre a alimentação na formação identitária e viabilização física do brasileiro a partir do pensamento freyriano, como a presença da comida como fato social e estruturante da própria obra do sociólogo. Um deles, mas não o único. “Seria injusto dizer que só a culinária tem papel estruturante na obra de Freyre. O tema é nele fundamental, com certeza. Mas junto com outras manifestações culturais – a música, o canto, a dança, a pintura, a arquitetura, o artesanato, a religião, as superstições. Ele foi pioneiro no tanto em que deu importância a todas essas manifestações, recorrendo a elas como fonte de pesquisa”, diz. No livro, conhecemos também o Gilberto Freyre patriarcalmente disposto na companhia da família, dos amigos e de ilustres, como Jorge Amado e Sartre, que com ele dividiram da mesa identitária.
Discípulo impactado do antropólogo norte-americano Franz Boas, pensador que corrompia o racismo evolucionista das ciências sociais do começo do século 20, Gilberto Freyre transpôs para o Brasil uma teoria do homem situado, do sujeito social que só pode ser explicado a partir de sua própria cultura historicamente localizada. “Ele compreendeu a íntima relação que os alimentos tinham na formação da própria identidade dos povos”, diz Maria Lecticia.
“Participando de seminários e congressos, percebi que os livros citados de Freyre eram basicamente Casa-grande & senzala Açúcar. Comecei, por curiosidade, a procurar em outros livros. E os alimentos estavam presentes em todos eles”, diz a escritora, que leu tudo o que Gilberto publicou, inclusive seus discursos parlamentares, artigos de jornal e revista, prefácios, conferências e poesias. Muita coisa já esgotada e arquivada pela FGF.
Apesar de seu gosto cosmopolita criticado por Bandeira, Lecticia lembra que, para Freyre, “era importante preservar as receitas tradicionais, herdadas das três culturas que nos formaram. Haveria, segundo ele, maior virtude em comer patrioticamente mal, mas comida da terra, que em regalar-se das alheias”. Assim, seria alimentada a identidade.
Gilberto Freyre e as aventuras do paladar – Lançamento quinta-feira, às 17h, no Pátio Café (Av. Rui Barbosa, 141). Preço: R$ 80 .