Há muito risco, sempre, ao se colocar em um texto literário pedaços de uma visão sociológica. Interpretar um contexto dessa forma termina vez ou outra o solidificando, dando pouco espaço para a dubiedade e alteridade que uma narrativa precisa ter para se sustentar e deslocar o leitor de alguma forma. Atlântico, conto do escritor cearense radicado em Pernambuco Ronaldo Correia de Brito, mexe com esse campo arenoso de uma literatura que, em si, revela parte da estrutura da realidade. A obra, lançada em março pela Mariposa Cartonera, ganha agora uma nova versão, em formato digital, pela Cesárea, que disponibiliza a narrativa nesta quinta em seu site, www.cesarea.com.br. A obra será vendida por R$ 5, e o dinheiro será revertido para o movimento Ocupe Estelita.
Felizmente, na narrativa, Ronaldo evita os perigos do sociologismo. Não deixa de se furtar de fazer um retrato crítico das fendas que separam classes sociais e vivências no Recife, ligando os pontos entre prédios, favelas, engenhos e escravos. Irônico e belo, Atlântico permite que se acompanhe, como se falasse apenas do percurso do Capibaribe para o mar, a vida de Cecília, uma das três irmãs criadas pela avó na periferia do Recife.
Ronaldo, com a sua prosa derramada e generosa, constrói a história através de paralelos, sutis ou gritantes. Cecília, alertada das contradições pelo seu professor de história, só olha pela grade do Caxangá Country Club um campeonato de hipismo. Ao mesmo tempo, o leitor vai ouvindo a história de duas garotas que sumiram depois de uma festa numa praia. O Recife do conto parece condenado a repetir sua história de violência social e sexual.
Como já havia feito em Estive lá fora, romance sobre o Recife no período da ditadura, Ronaldo faz aqui uma homenagem destrutiva à cidade. É um gesto típico de João Cabral (referência direta da narrativa), que falava do seu amor por algo através de uma dissecação cruel dele. Ronaldo vê a capital se alastrar como “fogo em palheiro, engolindo os mangues, as florestas, as palafitas ribeirinhas e o próprio rio”, engolindo também as casas antigas e empurrando os mais pobres para cada vez mais longe. Em Atlântico, o Recife ganha ares de cenário distópico, e o mais impressionante é que quase nada parece diferente de como é hoje.