Quando tinha cerca de nove anos, o professor Lourival Holanda escreveu a sua primeira obra. “Eu era uma alma muito religiosa, e ainda sou, de alguma forma. Eu lia muitos relatos de santos e fiz um meu”, conta. Entre risadas gentis, lembra que narrou São Francisco de Assis indo evangelizar árabes – na sua história, o frade italiano chegava a atravessar uma fogueira.
Desde então, Lourival tem tido uma vida dedicada à leitura, ao ensino e à reflexão. Mais do que isso, a sua paixão pela literatura existe sempre de uma forma avessa ao formalismo excessivo, à arrogância e ao encastelamento. Um dos principais pesquisadores de literatura no Estado, ele assume segunda (11/7), depois de muita relutância, uma cadeira na Academia Pernambucana de Letras (APL) – se junta a outros colegas de pesquisa em letras como Luzilá Gonçalves e Lucila Nogueira. A cerimônia acontece às 17h, na sede da instituição.
O professor de Letras da UFPE já havia sido convidado outras vezes a se candidatar a uma cadeira. Sempre hesitou. “Minha geração toda tinha um pé atrás com as academias. Achávamos que elas tinham uma estrutura estagnada, coisas provincianas. O que mudou é que houve um movimento aqui de trazer um pouco mais dos jovens, pessoas com que trabalhamos. A minha ilusão se transformou numa esperança”, comenta o professor.
A sua primeira história, com São Francisco atravessando o fogo, foi seu “primeiro pecado”. Como pesquisador e crítico, Lourival lançou livros como Fato e Fábula (1999), Sob o Signo do Silêncio (1992) e Álvaro Lins: Crítico Literário e Cultural (2008), mas continuou escrevendo, de forma ainda mais discreta, ficção e versos. “Eu sou muito avarento com a publicação. Às vezes acho que ela é uma espécie de prostituição, não sei”, brinca. Para ele, a relação com a literatura dispensa formalidades. “Meu amor por ela é um casamento que não precisa de papel passado.”
Quem conhece Lourival de palestras, debates e, principalmente, da sala de aula sabe que a docência é, para ele, mais do que transmitir conhecimento ou “ensinar literatura”, essa ciência sem “informações precisas”. “Eu tento passar para os alunos a paixão pela literatura. Eles podem aprender com a leitura pelo resto da vida se abrirem o próprio espírito. A docência para mim é sedução, é mostrar esse caminho”, comenta. Até por isso, quando é perguntado por alunos, diz que tem dificuldades de sugerir leituras – gosta de lembrar que “cada sensibilidade literária é diferente”.
"EXÍLIO DA LITERATURA" - Lourival nasceu em Bodocó, terra da sua família. Quando partiu para estudar, ficou num internato do Mosteiro de São Bento, do Colégio Diocesano, em Garanhuns. Lá, descobriu o “Google da sua época”, a coleção Tesouros da Juventude, que trazia textos sobre história, ciência e conhecimentos gerais. Também explorou clássicos como os russos Dostoievski e Tolstoi e o grego Nikos Kazantzákis. Antes, o gosto pela leitura foi sendo alimentado por uma coleção de paradidáticos com obras do italiano Emílio Salgari (1862-1911) – eram narrativas de aventura, prolixas, mas que despertaram o seu imaginário.
“Acho que esse jeito introvertido sempre foi uma coisa minha, as circunstâncias só me fizeram manifestar. Sou um rapaz do Sertão, e isso significa que tenho uma certa tendência a ser ensimesmado. Eu me encontrei na literatura, no exílio imaginário da literatura” revela.
Jovem, Lourival decidiu que queria estudar filosofia fora do Brasil. “Eu tinha começado o curso aqui, mas as aulas eram só os clássicos, Aristóteles e Platão”, aponta. Partiu para a França, estudou em Paris e, para se sustentar, trabalhou como guarda noturno, servidor em um banco e tradutor. “Fui sem nada no bolso e sem condições. Para conseguir viajar um mínimo, fazer qualquer coisa, trabalhei enquanto estudava”, conta.
Foi nesse período que teve aulas com Michel Foucault e Jacques Lacan. “A filosofia aqui era passadista: pouco depois, me encontro na França, na porta de uma fábrica da Renault, falando sobre o a filosofia com o proletariado”, lembra.
Quando pensou em desistir do curso, foi convencido a continuar pelo filósofo e crítico Jacques Ranciére, um dos principais nomes da academia francesa hoje. “Anos depois, voltei a encontrá-lo e disse que devia minha estadia na França a ele. Ele comentou que lembrava de mim, ‘um brasileiro muito empenhado’. Eu devia ter muito entusiasmo na época”, diverte-se o pesquisador.
De volta no Brasil, decidiu-se focar na literatura, fazendo mestrado e doutorado na USP. Ensinou por muito tempo em Manaus antes de se transferir para o Recife. Apesar dos anos de academia, um dos gestos que define Lourival é sua contínua abertura – para o diálogo, para a literatura atual, para os novos tempos. Pode falar de Graciliano Ramos, de Álvaro Lins e de Albert Camus, mas sem deixar de conectá-los com o Twitter ou com autores contemporâneos.
Agora, já depois dos 65, Lourival descobriu um novo prazer: a edição. Assumiu a direção da Editora da UFPE e tem tentado dar a ela um padrão editorial. “Eu gosto muito do objeto livro, de manuseá-lo. Gosto de um livro com uma margem ampla, bem feito. Ser chamado para editar foi muito bom para mim. Acho que guardei essa surpresa para quando ficasse mais velho”, comenta.