HQ mostra a urgência da escrita de Carolina Maria de Jesus

Contra o racismo e a miséria, Carolina Maria de Jesus escrevia e terminou criando o clássico Quarto de Despejo
Diogo Guedes
Publicado em 25/07/2016 às 12:50
Contra o racismo e a miséria, Carolina Maria de Jesus escrevia e terminou criando o clássico Quarto de Despejo Foto: Reprodução


“Ela existiu”. A primeira frase da história em quadrinhos Carolina (Veneta) traz encravada em cada uma de suas sílabas a própria urgência: é preciso saber mais sobre Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Negra, pobre, mãe solteira, favelada, catadora de papel, a escritora que ergueu dos papéis em branco que encontrava o volume Quarto de Despejo é – ou deveria ser – um capítulo essencial da história não só da literatura brasileira, mas do racismo e da desigualdade social. A arte de viver, a arte mais difícil, segundo ela mesma, teve suas muitas crueldades com ela. Seria uma crueldade a mais fingir que ela não existiu.

Com roteiro da professora Silerne Barbosa e desenhos do quadrinista João Pinheiro, Carolina é uma HQ sintética, mas, talvez por isso, ainda mais necessária. A história de Maria Carolina de Jesus precisa de muito pouco para impressionar quem a lê – na verdade, ela mesma transformou em literatura sua vida, seu cotidiano de fome, sua infância, as pessoas que a cercaram. Em preto e branco, o quadrinho se restringe a quando Carolina já vivia na favela do Canindé e escrevia nos intervalos entre alimentar os três filhos, catar papel, lavar roupas para fora, ou seja, tentar existir. Nunca quis ficar por conveniência com os homens pinguços da favela: “Entre os homens e os livros, eu fico com os livros”.

Existir, apesar da miséria, e escrever foi o retrato da resistência da autora. Pelas ruas, sendo humilhada e sofrendo com o racismo, repetia para si mesmo, como um mantra, que era poeta. Um dia, um repórter, Audálio Dantas, ouviu, enquanto observava a favela para fazer uma reportagem, Carolina dizer que iria colocar seus desafetos “em um livro”. Perguntou a ela sobre isso e, ao ler o que ela fazia, trocou a matéria – precisava falar daquela mulher.

Meses depois, Audálio ajudaria a editar Quarto de Despejo, volume com os diários de Carolina. Ali, ela dizia: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visitar com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. A obra vendeu 100 mil exemplares e chegou ao topo da lista dos mais vendidos. Carolina, com esse dinheiro, chegou a sair da favela, mas nunca foi plenamente aceita como parte dos “escritores”: continuaria a sofrer com o racismo e a ser perguntada se ela mesmo havia escrito tudo aquilo. Hoje, sua obra voltou a ser – felizmente – alvo de interesse, principalmente nas academias.

Se Quarto de Despejo é uma introdução – a socos e pontapés no estômago – à miséria brasileira, vista e escrita porque a vivia, Carolina reconta a a dura história da autora. É mais uma forma de Carolina de Jesus continuar a existir. É mais uma forma de lembrar que os quartos de despejo continuam existindo.

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