É difícil definir nomes como Joaquim Cardozo e Hermilo Borba Filho. Talvez a palavra mais justa seja um termo simples, criadores, porque ambos exerceram várias facetas da escrita, do teatro e do pensamento como um todo. Homenageados do Festival RioMar de Literatura, os dois vão ter suas obras debatidas, celebradas e encenadas no evento, que acontece no Teatro RioMar.
Nesta terça (28) o tema do dia será Joaquim Cardozo. A partir das 14h40, depois da abertura com Margarida Cantarelli, o dramaturgo e professor João Denys vai abordar o teatro do autor. Às 15h30, ele será o tema da conversa entre o crítico e professor Lourival Holanda e o arquiteto Paulo Andrade. Nos intervalos, a Cia Dispersos de Teatro faz pequenas cenas de peças suas. A programação ainda conta com uma mesa entre José Mário Rodrigues e Marcus Accioly e um show de Claudio Almeida e Beth Coelho.
Joaquim Cardozo, nascido há 120 anos, é um poeta celebrado por seus pares e pesquisadores, mas pouco conhecido do grande público, se comparado a colegas de geração. Foi engenheiro – realizou os cálculos para obras “impossíveis” de Niemeyer –, poeta, dramaturgo, contista. João Denys, por exemplo, conheceu sua obra antes mesmo de conhecê-lo, ao trabalhar com a dramaturgia de um bumba-meu-boi que era copiada da recriação do poeta e engenheiro.
“A minha paixão foi crescendo a partir da obra dramática dele, e depois cresceu com a sua obra poética. Aqui em Pernambuco, no entanto, o santo de casa parece que não faz milagre. E Joaquim Cardozo nunca se interessou pelos milagres, mal se preocupava em publicar um livro. Era uma pessoa despojada, humilde”, explica o professor e dramaturgo.
Para João Denys, o poeta era muitos, “um pós-moderno antes da pós-modernidade”. “Ele era holístico. Não havia diferença entre poesia e teatro. Ele mistura o que consideram alta cultura e cultura popular, faz o que chamamos hoje de redes. Acredito que ele não é deste mundo, não é do mundo do capital. Dizem que ele deixava cheques de pagamentos empilhados na sua mesa, sem se preocupar em descontar por longos períodos”, aponta o admirador.
Lourival Holanda, que vai falar sobre o “rigor do ritmo” de Cardozo, ressalta que o poeta é pouco conhecido também por ter fugido dos modelos do modernismo. “Cardozo teve a sorte não ter sido parte dessas ‘escolas’ modernas. As más línguas o chamam de poeta para poetas, mas isso é uma visão reducionista dele. Ele tem esse rigor do ritmo, que não se detém em manifestos, que vai além deles”, comenta o crítico.
O escritor produziu poemas visuais, fonográficos e conceituais – era de uma “certa vanguarda sem vanguardismo, sem a loucura”. “Sua obra tem uma certa contenção, não é piegas, não tem excessos, não tem sentimentalismos, não é cerebral. Seu ritmo é ligado ao popular sem fazer concessões. Seu verso é comedido, mas com uma imensa consciência da linguagem”, explica Lourival. Não é por acaso que Carlos Drummond de Andrade, que elogiava a autonomia de Cardozo ante os modismos, o definia como “um aparelho severo de pudor, timidez e autocrítica”.
O isolamento e esquecimento de Cardozo se em parte também porque ele não deixou “herdeiros oficiais”. “Os filhos de Joaquim somos nós. Ele não é como Hermilo Borba Filho, que tem uma guardiã como Leda Alves (embora ele ainda seja injustamente esquecido em nível nacional). Até na engenharia Niemeyer o eclipsou um pouco, porque poucos lembram que os seus cálculos permitiram tudo ser feito”, destaca João Denys.
O pesquisador de teatro e professor da UFPE Luiz Reis, que vai falar sobre a obra de Hermilo amanhã, ressalta os pontos de contato na obra dos dois autores. “Hermilo tinha muita admiração pelo poeta Joaquim Cardozo, tinha um grande respeito intelectual por ele. Mas o teatro de Cardozo é feito no final da vida, então, Hermilo não tem depoimentos sobre. Os dois deram interpretações autorais e própria a um certo espírito regionalista que começou com Gilberto Freyre aqui. Como criadores de uma forte marca, vão operar essa equação de forma singular, sintonizados com seu tempo e as questões do momento e tentando olhar essa contemporaneidade nas tradições populares”, comenta o docente.
Os dois ficaram fascinados, por exemplo, com o bumba-meu-boi, embora de maneiras distintas. “Hermilo mergulha na espetacularidade, no trabalho dos brincantes. Joaquim vai delirando em cima daquilo. São dois autores geniais, que orgulham a cultura do Brasil”, define Luiz Reis.