Biografia não autorizada de Caetano faz primeiro teste à liberdade

O homem que há quatro anos esteve no centro de um grupo de artistas que defendia a preservação da intimidade em detrimento da liberdade irrestrita dos biógrafos tem a vida exposta em 532 páginas escritas pelos autores Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco
Julio Maria/ Agência Estado
Publicado em 21/04/2017 às 14:30
O homem que há quatro anos esteve no centro de um grupo de artistas que defendia a preservação da intimidade em detrimento da liberdade irrestrita dos biógrafos tem a vida exposta em 532 páginas escritas pelos autores Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco Foto: Divulgação


Anunciado o ato literário que pode ser considerado como o primeiro teste à legitimidade de uma nova ordem no mercado editorial: a biografia não autorizada de Caetano Veloso. O homem que há quatro anos esteve no centro de um grupo de artistas que defendia a preservação da intimidade em detrimento da liberdade irrestrita dos biógrafos tem a vida exposta em 532 páginas escritas pelos autores Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco. A Vida de Caetano Veloso - O Mais Doce Bárbaro dos Trópicos levou ao todo 20 anos para ser publicado. Seus bastidores poderiam render um outro livro.

A biografia não autorizada

O título reverencial revela com sutileza o espírito da biografia Não há pontos passíveis de embates que possam desagradar a Caetano. Algumas histórias aparecem mais aprofundadas, como a sequência que se passa nos tremores do regime militar, com as prisões sucessivas no Brasil sob pesado terror psicológico que deságuam no exílio forçado em Londres. Um personagem encontrado pelos pesquisadores ajudou com detalhes desse período, o coronel Respício Antonio do Espírito Santo. "O que Caetano conta em seu livro Verdade Tropical é de acordo com o que ele presenciou. O coronel tem a visão do que acontecia fora da cadeia", conta Drummond.

Até chegar ao dia 19 de fevereiro de 1969, quando seria libertado depois de 54 dias de prisão, Caetano amargaria a incerteza do destino e a iminência da morte. Sairia em pele e osso e com a cabeleira vasta devidamente cortada, fechando o ciclo de um suplício para começar outro. Entende-se por que Caetano, em entrevistas como a que acaba de conceder para o documentário de Lúcia Veríssimo sobre Severino Filho, líder do grupo Os Cariocas, se descontrola quando fala de sua partida para o exílio. Ele faz questão de ajustar a história, não suportando ouvir que partiu para Londres por vontade própria.

Ao contrário de Gil, Caetano não tem uma adaptação fácil em Londres. As drogas que Gil sugere para viagens sensoriais são recusadas pelo amigo, o que vai caracterizar o traço "caretano" de Caetano. "A primeira experiência com as drogas foi com o lança-perfume, que acaba sendo muito traumática a ele", diz o biógrafo. "Ele teve medo de morrer." Com a ayahuasca, também passa mal. "Diferentemente de Gil, seu organismo não aceita essas substâncias."

Outra sugestão de leitura importante da construção de sua personalidade está na formação cultural do jovem reflexivo. Antes mesmo da música, que não parecia deslumbrá-lo de início, suas atenções estavam voltadas à literatura, às artes visuais e às muitas sessões de cinema de Santo Amaro, com filmes franceses e italianos, e, eventualmente, de Salvador. "Acho Caetano um grande artista plástico", diz Drummond. Ele coloca no livro um autorretrato do artista e lamenta não ter incluído uma série de pinturas da cantora Maysa.

O caldo que sorve dessas fontes com a sede dos 16 anos mistura-se ao conhecimento do ensino formal de colégio, que Caetano também aproveita bem, e acaba por dar forma a uma sensibilidade holística na qual tudo parece se misturar. Quase se entende que a música nem é o principal para ele, mas apenas o veículo de expressão ao qual se adaptou melhor. "Pintor ou professor? Cineasta ou escritor? Quem sabe filósofo? Estava de volta à estrada sem saber se queria estar nela ou não", dizem os autores quando se aproximam de 1965.

Caetano surge assim, "de fora para dentro", enquanto o amigo Gil, mais especializado e mais músico, emerge de dentro para o universo. Quando chega a Tropicália, fica tudo mais nítido. Gil arquiteta o que Caetano já tem na alma. A derrubada de muros entre gêneros, juntando pífanos de Caruaru com guitarras de rock-'-roll, ganharia forma nos festivais da TV Record e seria levada às últimas consequências em shows como o da Boate Sucata, no Rio. "Acompanhado pelos Mutantes, cantou deitado no chão, plantou bananeira, deu salto, cambalhota, pintou e bordou", conta o livro.

A história avança e a temperatura cai. Anos 90: Caetano, sempre tropicalista, assume um protagonismo na axé music. Anos 2000: seu peso na história o credencia cada vez mais a viver dela. A produção de fatos biográficos fica mais rara e os biógrafos precisam lutar para que seus textos não ganhem tons de release - o que, fatalmente, acaba acontecendo. Um ponto de ebulição é retomado em 2013, quando Caetano alinha-se ao grupo Procure Saber no debate contra as biografias não autorizadas, mas já não existe emoção. A publicação parece tomar cuidados para não desagradar ao biografado e o preço é a burocratização da narrativa. Ao final do livro, uma frase de louvação faz o que nenhuma biografia deveria fazer em prol de sua credibilidade: "Vida longa e próspera a Caetano Veloso!".

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