Já ouviu falar na fábula do beija-flor? Aquele que tentou apagar um incêndio na floresta levando gotículas de água em seu bico? Essa história, uma metáfora sobre solidariedade, é o que guia o trabalho artístico da autora e ilustradora franco-brasileira Alicia Cuerva, que percorreu oito países da América Latina durante um ano, transformando em receitas veganas os pratos típicos de cada lugar por onde passou. Essa experiência resultou no livro "Receitas que Voam - Veganoviajantes", lançado em 35 exemplares nesse sábado (9), no restaurante Flô de Jambo Vegetariano, em evento com degustação das receitas ilustradas na obra, onde os bichos protagonizam as páginas, mas ficam fora dos pratos.
Segundo a autora, o objetivo do livro é de mostrar que é possível, sim, mudar o mundo com coisas simples como a alimentação. “Quero despertar o beija-flor que existe dentro de cada um, que fazia a sua parte mesmo sabendo que era pouca diante do todo”, explana. Com ilustrações bastante coloridas e oníricas, Alicia parece também querer rememorar a infância dos seus leitores, fazendo os animais aparecerem como amigos, não como ingredientes. “Aprendi a não fazer diferença entre um cachorro e um carneiro. Nossa educação é construída minuciosamente para que nunca questionemos as nossas práticas alimentares e os nossos modos de consumo”, defende, no prefácio do livro.
Para Alicia, a primeira coisa que se deve saber na cozinha é que função tem um ingrediente no prato. “É para dar sabor? Textura? Efeito químico?”, indaga. “Sabendo-se que o ovo, por exemplo, é usado para dar liga, é possível ter em mente a banana como um substituto”. Nessa lógica, o Veganoviajantes traz 45 receitas em suas quase cem páginas, sendo 35 delas versões de pratos típicos do Chile, Argentina, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Uruguai e Brasil. Cada capítulo do livro representa um país e um deles ainda é dedicado à Venezuela, que apesar de não ter feito parte do roteiro da autora, foi incluído por questão de solidariedade ao difícil momento socioeconômico e político que enfrenta o país. As dez receitas restantes são consideradas mais básicas, recomendadas para aqueles que estão sendo iniciados na dieta vegana.
Na opinião da autora, uma das receitas que se sobressaiu perante as demais foi o anticucho, prato típico dos Andes boliviano que normalmente é preparado com coração de vaca. “No lugar do ingrediente principal, usamos o coração da floresta, que é o cogumelo, pois tem uma textura parecida”, explica. Quando o assunto é comida brasileira, há recriações para o pão de queijo, para a farofa, moqueca, feijoada e ainda para os bolos de fubá e laranja. “O sabor defumado do porco pode ser sentido mesmo na ‘feijoada verde’, basta colocar uma rodela de coco”, ensina. “Na moqueca, substituímos o peixe pelo palmito e por aí vai”. Questionada sobre o público-alvo da publicação, a autora adverte: “o livro não é só para veganos ou vegetarianos, mas para todos aqueles que gostam de comer bem e apreciam boas iguarias”.
Não é só no conteúdo que a franco-brasileira utiliza a literatura como forma de intervenção política. Com grande inventividade, Alicia converte o papelão coletado pelas ruas nas capas de seus livros, recortadas e pintadas à mão, uma a uma, com uso de tintas atóxicas. Depois de imprimir as páginas, ela junta e costura a capa e o miolo com fio encerado, usando uma técnica de encadernação japonesa. “Na impressão, eu uso papel normal mesmo. O que as pessoas não sabem é que o papel reciclado contamina mais, devido aos produtos químicos que colocam no processo”, informa.
A este tipo de publicação dá-se o nome de cartonera, expressão derivada da palavra em espanhol para papelão, cartón. Às margens do mercado tradicional, as editoras cartoneras surgiram na Argentina, na década passada, logo após o agravamento da crise econômica e social que atingiu o país, e se espalharam pela América Latina. Elas se caracterizam por empregar formatos artesanais, em prol da economia solidária, da sustentabilidade e do comércio justo. Fora isso, abre portas para editores que buscam uma relativa independência dos circuitos editoriais. Hoje, são mais de 300 editoras cartoneras no mundo.
Receitas que voam é fruto de uma co-edição entre as cartoneras Vento Norte, de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e Cosette, da França, editada pela própria Cuerva. “Para mim, ‘cartonear’ é uma forma de produzir conteúdos livres. Eu sou a própria editora, então ninguém vai me censurar”, declara, acrescentando que os livros de papelão têm a incrível capacidade de se alastrar pelo mundo e atender a objetivos e conceitos diversos. “Meu trabalho não é só artístico, mas também político e social. Acredito que é uma forma de contribuir para despertar consciências e fazer evoluir a sociedade, mostrando alternativas sustentáveis e mais éticas”.
Convertida ao vegetarianismo há cerca de três anos e meio, Alicia aderiu ao regime alimentar vegano dois anos depois, em abril de 2016, antes de iniciar sua jornada latino-americana. No prefácio do livro, ela conta que lhe causava preocupação viajar para lugares onde o consumo de carne rege a elaboração dos pratos, a exemplo do norte da Argentina. “Na minha concepção de viagem e descobrimento de outras culturas, era indispensável a exploração da cozinha local. Mas, conforme os meses iam passando, percebi que poderia transformar as receitas locais e abrir os olhos das pessoas”, relata. Foi no Brasil, mais especificamente no Mato Grosso do Sul, que ela decidiu, em 2014, cortar a carne da sua cozinha. “Visitei uma zona de desflorestação severa, onde os habitantes locais são desapropriados e assassinados para dar espaço a plantações de vegetais destinadas a alimentar o gado”, diz, no prefácio.
Filha de brasileira, a autora estava na região Centro-Oeste do País fazendo uma pesquisa para seu mestrado em literatura e cultura brasileira. No mesmo ano, ela conheceu pessoas envolvidas com o movimento cartonero e produziu seu primeiro livro de viagens, o chamado “Palabras, frases, párrafos et otros bixos”, de literatura portuñhola, como ela própria gosta de classificar. Inscreveu o material em um festival francês que premia os melhores cadernos de viagens e acabou vencendo. “Ganhei confiança e percebi que ser professora não era para mim. Eu queria ser artista”, exclama. Dando continuidade ao seu sonho, lançou, em 2016, uma releitura cartonera do clássico “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry, na qual o protagonista é sarará, usa sandálias havaianas e tem como amigo um lobo-guará no lugar da raposa.
Apesar de ter abandonado a carreira acadêmica, Alicia não deixou de fazer pedagogia pelo mundo, ainda que de forma alternativa. Em todos os países que visitou na América Latina, ela realizou oficinas sobre cartonaria, levando conhecimento para dentro de escolas, bibliotecas, comunidades carentes e até para um centro de reclusão, no Uruguai. “Para mim, terminar uma oficina e ver aquelas crianças correndo para me abraçar e dizer ‘obrigada por vir de tão longe’, não havia nada melhor”, conta, emocionada.
Autodidata, a ilustradora nunca estudou arte, mas se autointitula como uma “observadora do mundo ao redor”. Suas principais referências são artistas que começaram do nada, assim como ela. “Stéphanie Ledoux, Cécile Hudrisier e Tiphaine Rivière me inspiram muito no dia a dia, mas acho que minha principal referência é a minha vida louca. São todas as minhas viagens, minhas raízes de vira-lata e os encontros que fiz por aí”, assume. A cozinhar, entretanto, aprendeu com o pai, francês, aos dez anos. Foi cozinhando, desenhando e pintando em troca de hospedagem que fez dezenas de amigos, cartoneros ou não, sempre mostrando às pessoas que é possível, sim, viver sonhando.