Em seus textos jornalísticos, ele denunciava o excesso de pedantismo gramatical e religioso, e dava início a um tipo de crítica literária mais ensaística. Na vida e ao longo de sua obra, achava fundamental problematizar a questão racial no Brasil, e as hipocrisias da classe política – que, por sinal, odiava talvez tanto quanto desgostava de futebol e dos estrangeirismo na língua portugueses. Tecia também duras críticas à atuação militar e achava importante discutir a República. Com essa pequena descrição, provavelmente se pensa logo em nomes contemporâneos que estão sob os holofotes da mídia, pautando estas e outras discussões, haja vista a atualidade das temáticas citadas.
Mas estamos falando de Lima Barreto, que faleceu – precocemente aos 41 anos, devido aos problemas de dependência alcoólica – em 1922, cujas ideias, livros e crônicas foram escritos no início do século 20, mas ainda se revelam válidos e necessários em 2017. O romancista carioca vem sendo celebrado ao longo deste ano, a partir do lançamento de sua biografia, Lima Barreto: Triste Visionário (Companhia das Letras), de Lilia Schwarcz, reedições de obras e homenagens em feiras literárias, como foi o caso da Flip em julho passado.
A Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que ocorre no próximo mês de outubro, também irá prestar homenagem a Lima Barreto. Segundo o diretor geral do evento, Rogério Robalinho, a decisão de prestar esse tributo ao escritor se deu ainda em 2015, durante a última edição da Bienal. "Lima foi um escritor muito relevante para o contexto da época em que viveu e ainda hoje, numa sociedade de muitos contrastes, onde a questão racial é um elemento central. A decisão de prestar uma homenagem a ele foi um acerto da nossa equipe", explica.
O Brasil de Lima Barreto ainda é – em partes, mas infelizmente – o Brasil de hoje. O racismo perdura, a corrupção também. "Estamos vivendo um momento marcado por uma dicotomia muito forte, e a única saída contra o ódio, contra esse ranço, é lidar com a pluralidade", analisa a historiadora, antropóloga e biógrafa do escritor carioca, Lilia Schwarcz, que já tem presença confirmada na Bienal pernambucana. "Eu acho que ele nunca foi tão atual! Talvez ele fosse até atual demais para seu momento, pois ele falava do racismo numa época em que ninguém queria falar de discriminação racial. Ele também falava das falácias da República num momento em que a República ainda estava se inventando", ressaltou, em entrevista realizada na Bienal do Livro do Rio. Na ocasião, a escritora falou sobre a vida e a obra de Lima Barreto em uma palestra que lotou o espaço do Café Literário e reuniu dezenas de leitores numa longa fila de autógrafos.
A obra da historiadora é provavelmente a mais completa já escrita sobre Lima Barreto. Até então, o trabalho de referência sobre a vida do carioca tinha sido A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa, lançada em 1952. Após 55 anos, ainda tinha muito que se descobrir e analisar sobre o escritor. "Não existe biografia definitiva. Sempre há novos aspectos a abordar e no início me questionei sobre o que havia de novo para se contar sobre Lima Barreto", explicou, relembrando o primoroso trabalho de Francisco Barbosa.
Para poder concluir Lima Barreto: Triste Visionário, foram necessários a Lilia dez anos de imersão no universo barretiano. Durante este tempo, ela percorreu os locais por onde o escritor costumava passar, como o caminho diário partindo de Todos os Santos (local esquecido por todos os santos, como ironizava o carioca) até a estação da Central do Brasil. Lilia transitou pelas mesmas ruas que Lima, cerca de 90 anos depois, e criou assim um forte vínculo com ele. De pesquisado, Barreto se tornou um conhecido. "Quando trabalhamos muito tempo com um autor, acabamos por criar um laço íntimo. Então foi difícil quando escrevi o capítulo sobre a morte dele. Lima estava num momento de saúde muito debilitada pela bebida, havia sido internado num hospício, foi um fim triste."
Esta permanência no chamado Hospital Nacional de Alienados ocorreu em dois momentos: primeiro em 1914 e depois entre o fim de 1919 e o início de 1920. Foi durante esta segunda passagem que Lima Barreto manteve o seu diário, reeditado este ano sob o título de Diário do Hospício – O Cemitério dos Vivos, com interessantíssimo prefácio de Alfredo Bosi. É impressionante a lucidez com a qual o escritor conseguia relatar os detalhes do hospital e o tratamento dado pelos funcionários do local. Em um dos trechos em que reflete sobre o porquê de estar ali, ele escreveu: "De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: delírio." Já criticando a atuação policial para com os pacientes, Lima diz que não se incomoda "muito com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida."
A questão racial se mostrava polêmica já na primeira internação de Lima, pois ele já era reconhecido como intelectual e foi identificado em sua ficha de admissão como branco, como costumava acontecer com figuras públicas e cultas por mais que se declarassem negros. A hipocrisia e o preconceito do Brasil do início do século 20 eram um dos pontos chaves da obra do carioca, que dedicou sua curta vida à escrita. Lima se dizia casado com a literatura e em seus livros, os grandes vilões eram os militares e o racismo. Durante seus últimos anos, eles se juntaram ao grande malefício de sua vida, a bebida.
"Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela", escreveu dois anos antes de falecer. Se passaram 95 anos desde a morte de Lima Barreto, mas sua literatura continua promovendo reflexão. Talvez tenha sido isso o que ele tinha a pedir da literatura, afinal.