Atuando há 35 anos na televisão, Fernanda Torres vem desde 2013 dividindo com o público seu outro talento, o da escrita. Ela acaba de lançar pela Companhia das Letras seu segundo romance, A Glória e Seu Cortejo de Horrores (216 páginas, R$ 44,90) e conversou com a repórter Valentine Herold sobre arte, representação política e sua relação com Pernambuco.
Leia também a resenha do livro aqui.
JORNAL DO COMMERCIO - O título do livro é uma frase conhecida de sua mãe, para quem também você dedica o livro. Ela teve um papel importante na sua formação literária e na sua decisão de publicar romances?
FERNANDA - Meus pais sempre foram leitores vorazes, mesmo quando não tinham dinheiro para pagar o aluguel, recém-casados, gastavam o que não tinham em livros. Eles nunca me obrigaram a ler, mas as estantes da nossa casa sempre me atraíram, a vontade de saber o que estava escrito naquele monte de livros. Em “Freakonomics”, o economista Steven Levitt e o jornalista Stephen J. Dubner afirmam que ter livros em casa, mesmo que os pais não leiam para seus filhos, influencia no hábito da leitura das crianças. Comigo foi um pouco assim. Minha mãe sempre escreveu muito bem, ela adaptou romances na rádio, quando estava em início de carreira e usava o nome Fernanda Montenegro para diferenciá-lo do de atriz, Arlette Pinheiro. O nome da adaptadora acabou vencendo. Mas ela nada teve a ver com a minha carreira literária. Foi o Mario Sérgio Conti, na época editor da Piauí, quem me chamou para escrever na revista, e acabei colaborando com alguns artigos. Depois a Veja Rio e a Folha de S. Paulo me chamaram para manter colunas fixas. Acabei chegando à Companhia das Letras através de um convite do Fernando Meirelles para escrever um conto sobre a terceira idade. Era um projeto de série para a televisão, que acabou não saindo. Esse conto se transformou no primeiro capítulo do “Fim”. Eu também colaborei e escrevi roteiros de cinema, meu lado literário foi uma grande surpresa, mas não foi uma influência direta da minha mãe.
JORNAL DO COMMERCIO - Parte de "A Glória e Seu Cortejo de Horrores" se passa ao longo das décadas de 1960 e 1970. Você traça um panorama social, econômico e político do Brasil de então, inserindo no cotidiano de Mario Cardoso fatos verídicos da época, como a participação de Sônia Braga em Hair. Como foi o processo de pesquisa daqueles anos para a escrita do livro? Você sempre quis que a ficção dialogasse de certa forma com a realidade?
FERNANDA - Eu queria escrever um livro que refletisse sobre a potência que o teatro possuía, quatro décadas atrás, e a encruzilhada em que ele se encontra hoje. O livro acabou extrapolando o teatro, e se transformando numa reflexão sarcástica da cultura do país nesse quase meio século, visto através da carreira de um ator. Não pensei em retratar a realidade, nem sei se existe a realidade, ou só uma fantasia que a gente faz dela. Eu me vali de muitos artifícios, entrevistei pessoas, visitei um presídio, mas contei muito com a minha memória, não só do que vivi, como do que me foi relatado. Por ser filha de dois atores e estar nessa profissão desde os 13 anos de idade, convivi com muitos artistas mais velhos do que eu. Sei de histórias que vão de Dulcina, Procópio, até o Asdrubal. Fiz cinema, teatro, televisão, rodei em festivais pelo mundo. Fui testemunha da crise que se abateu sobre a indústria fonográfica, com a chegada da internet, que depois se alastrou pela imprensa, pela televisão, pelo cinema. Cresci num país pós-Ditadura, onde o artista era considerado o símbolo da justiça, da liberdade de expressão; hoje, a classe recebe ataques violentos, que vão de mamadora das tetas a esquerdopata. Acho que essa é a grande potência do livro, mostrar que a cultura de um país não é um fenômeno isolado, você pode narrar a nossa história, através das agruras de um ator. Há uma grande dose de fantasia na vida do Mario Cardoso do livro, tudo é ficção, embora esteja embaralhado com pessoas reais e com fatos verídicos.
JORNAL DO COMMERCIO - Dentre as críticas tecidas ao longo do romance há uma m particular que conversa muito com a contemporaneidade: a análise que Mario faz de Campos, o professor de teatro que leva seus alunos à Zona da Mata pernambucana no intuito de revolucionar o modus operandi dos cortadores de cana. É possível ver na figura de Campos a hipocrisia de uma suposta gestão horizontal e que se coloca no lugar do outro. Como você enxerga as atuais lideranças políticas brasileiras?
FERNANDA - Vejo um vazio imenso. Nós levamos vinte anos para construir as lideranças que nos representaram nesses últimos vinte anos de democracia. A passagem de faixa de um sociólogo para um líder sindical, de FHC para Lula, foi um momento impressionante na história política brasileira. Duas figuras que lutaram pela redemocratização, um saído do mundo acadêmico, o outro da classe operária; FHC entregando para Lula um país mais ordenado, com a inflação controlada. Havia um sentimento de futuro, alcançado depois do caos absoluto, de tragédias incuráveis, como a morte de Tancredo, como o confisco da Zélia e o impeachment do Collor. Vinte anos depois, houve a grande decepção: todos os partidos, à direita e à esquerda, se valeram de esquemas de corrupção, de superfaturamento de obras públicas e da ineficiência para sustentar a máquina eleitoral. A política se transformou num fim em si mesmo, ela sequestrou o país. O catastrófico governo Dilma coroou o fim desse ciclo. Agora, vivemos essa terra arrasada, feita de líderes sem grande dimensão, numa espécie de parlamentarismo provisório. A revolta é tamanha, a desilusão, que parte da população acredita nas promessas simplórias de líderes tacanhos e autoritários. A política perdeu a grandeza. Acho que enfrentaremos um longo período de vazio, com a economia ditando as regras, mas sem uma visão maior de país, cívica mesmo, cultural, educacional, empresarial. Sinto falta de grandeza de espírito, de sentido de futuro, de projeto de longo prazo, de algo além do toma lá da cá.
JORNAL DO COMMERCIO - Mario fica muito impactado com a produção de Hair que ele assiste e chega a dizer que nunca mais foi o mesmo depois. Você também já ficou fascinada por uma peça em específico? Se sim, qual foi e em que ocasião?
FERNANDA - O “Seria Cômico se Não Fosse Sério”, adaptação de Düremat para uma obra do Strindberg, com meu pai, minha mãe e Zanoni Ferrite, dirigidos pelo Celso Nunes, que vi aos onze anos. O Zanoni tem muito do Mario Cardoso do livro. O Asdrúbal, que assisti aos doze, no “Trate-me Leão”, foi um divisor de águas. Todos nós queríamos ser Regina, Luiz, Perfeito, Evandro, Hamilton. “Macunaíma”, do Antunes Filho, que vi aos treze, seguido do Nelson Rodrigues que ele montou. O trabalho da dupla Pedro Cardoso e Felipe Pinheiro, quem viu, nunca esqueceu. Todos os monólogos de Spalding Gray, que assisti em série, em Nova York, e que me levaram a fazer “A Casa dos Budas Ditosos” sentada numa cadeira diante de um microfone. “Fool Moon”, com os palhaços David Shiner e Bill Irwin; Pina Bausch; “Einstein On A Beach,” do Bob Wilson. O “Eu Malvólio”, de Tim Crouch, um assombro de ator e escritor. Recentemente, a extraordinária reedição de “O Rei da Vela”, do Zé Celso, com texto de Oswald de Andrade e o Abelardo de Renato Borghi. “Os Sertões”, do mesmo Zé Celso. Teatro é perigoso, mas quando acerta, não há nada que se iguale a ele, ao tour de force de um ator, ao vivo, na sua frente.
JORNAL DO COMMERCIO - O Recife é citado em dois momentos distintos na história, primeiro na chegada do protagonista a Pernambuco, antes de seguir para Xexéu, e depois como sendo o local onde ele estava quando o pai morre. Qual sua ligação com a cidade?
FERNANDA - Algumas cidades brasileiras possuem a força de terem sido capitais. Salvador, Rio e Recife, a Maurisstad dos Holandeses, emanam essa potência, possuem um sentido de fundação, de raiz do Brasil. O que acontece nessas cidades, por mais miseráveis, ou mal administradas que estejam, como é o caso do Rio, reverbera no resto do país. Pernambuco é um país, uma superpotência cultural, que vai de Ariano Suassuna a Chico Science, poderosa o bastante para ter um polo de cinema independente, de onde surgiu Claudio Assis e Kleber Mendonça. O teatro, a música, as artes plásticas tudo que esse estado produz é violento, antenado, alucinado, retado, independente, criativo e revolucionário. O pernambucano não conhece o complexo de vira-lata, eu acho até que ele tem pena de quem não é pernambucano. Nelson Rodrigues, o mais carioca dos dramaturgos, é pernambucano; Chacrinha é pernambucano; Luiz Gonzaga, João e Evaldo Cabral, Manuel Bandeira, é uma lista humilhante. O público de Recife é um povo culto, crítico, exigente, eu me sinto sempre meio acuada, meio raquítica, quando estou aí. Recife foi mais do que uma capital, ela foi a capital do levante contra a coroa portuguesa; isso resiste até hoje, esse caráter revoltoso, indomável. Pernambuco fundou o Brasil.
JORNAL DO COMMERCIO - Cada personagem que Mario já interpretou o marcou de maneira distinta porém quase definitiva. É difícil conseguir se "despir" da personagem após trabalhar um longo período interpretando-a?
FERNANDA - Se despir é fácil. Você não precisa carregar o personagem para casa, esse não é o problema, a questão é incorporá-lo, é chegar nele, se livrar é o de menos. Um ator é fruto dos personagens que encarnou, das experiências que teve no palco, ou em frente a uma lente. É o personagem que te dimensiona. Cabe a você fazê-lo grande ou pequeno, acertar ou falhar, esse é o teste. O Mario fala sobre isso, quando, muito jovem, consegue dar conta de Astrov, o anti-herói de “Tio Vânia”, de Tchekov, algo muito maior do que ele. Mario fala do delírio de alcançar aquele ser mítico, de conseguir virar outro, ser outro, quantos quiser; de ir além dessa prisão chamada eu mesmo. Isso é uma dádiva que essa profissão te dá, experimentar ser outro. De vez em quando acontece, de você atingir uma tal identificação, compreensão do personagem, que não há mais esforço, você pensa como outro, mas é só de vez em quando. Então, o problema é menos deixar ou não o personagem no fim do dia e ir para casa, isso não é difícil. A questão é na arena, é ser, ou não ser.
JORNAL DO COMMERCIO - O livro é narrado na primeira pessoa e o protagonista é um homem de sessenta anos, antigo astro de telenovela agora com a carreira em declínio. Foi natural ou desafiador para você se colocar como Mario Cardoso?
FERNANDA - Escrever também é se por na pele de outro. É menos físico do que o teatro, mais mental. É uma outra anomalia. Eu gosto de gente falha, em crise, e homens sessentões dão boas crises. Quando escrevi o capitulo do Rei Lear, que abre o livro, vi que havia encontrado um personagem. Eu já havia escrito a passagem da Tijuca, quando nem sabia que o Mario seria um ator. Eu estava um pouco empacada e resolvi escrever o fracasso do Rei Lear tupiniquim, feito num teatro de shopping, sem ter nenhuma certeza de que iria usar aquele material. A voz do ator, sofrendo de uma crise hilariante em cena, provou-se capaz de atravessar uma curva mais longa. Arrisquei juntá-lo à Tijuca e o Mario ganhou um passado, um trauma familiar, o livro foi se formando. Minha escrita costuma vir irônica, sarcástica, com certa dose de melancolia. Talvez eu me sinta livre para falar assim de um homem, a ser violenta com ele, mais do que eu me sentiria se estivesse narrando uma mulher. Assim como no caso do “Fim”, que trata de cinco machões hedonistas de Copacabana, escrever na pele de um homem me ajuda a me afastar de mim, a não ser confessional.
JORNAL DO COMMERCIO - No final do livro você agradece aos internos do presídio Evaristo de Moraes. Por que?
FERNANDA - Visitei o presídio para compor um trecho importante do livro. Trecho esse, que nem sairia, se eu não tivesse ido lá. Eu não tinha ideia da realidade do sistema prisional, era incapaz até de fantasiar. E a realidade se mostrou ainda mais irreal do que eu poderia supor. As paredes pintadas da ala evangélica, a dimensão das celas, as camas de concreto com os colchões sem forro no meio, a superpopulação, o rosto triste dos presos. Eu tinha muito medo de encarar esse capítulo, mas, quando voltei, saiu de enfiada, ainda sob o impacto da visita. Eu devo muito ao Evaristo de Moraes.