Nos últimos 50 anos, o Brasil mudou consideravelmente. Atravessou um difícil e cruel período de Ditadura Militar, vibrou com seu futebol ganhando prestígio internacional, foi palco de algumas revoluções musicais; passou por seus melhores e piores momentos econômicos e teve dois presidentes que sofreram impeachment – só para citar alguns dos grandes acontecimentos das últimas décadas. Todos eles afetaram diretamente os hábitos culturais do brasileiro, que passou a assisti-los através das cada vez maiores televisões, “emocionados com os reclames de natal, as estreias das novelas, as mensagens de fim de ano e os desfiles de Carnaval”, como bem retrata Fernanda Torres em A Glória e Seu Cortejo de Horrores.
A descrição citada nas aspas é de Mario Cardoso, o protagonista, ao falar de sua família. Mas a sagacidade da autora está no fato de conseguir transformar uma crítica pontual em análise macro da nossa sociedade, sem jamais perder a fluidez, o bom humor e perspicácia. Mario é um ator que, aos 60 anos, tenta resistir ao declínio de sua carreira voltando ao teatro, onde começou: ex-galã de telenovelas, ele vê no Rei Lear a chance de retomar sua longínqua popularidade. Mas claro que nada sai como previsto e, em meio ao fracasso da adaptação Shakespeariana, ele ainda tem que auxiliar sua mãe doente.
Acompanhando como um confidente esse turbilhão de desastres pessoais, o leitor vai conhecendo a trajetória de Mario Cardoso, desde sua juventude engajada politicamente, suas primeiras peças, a passagem pelo Cinema Novo, até sua acomodação televisiva em horário nobre.
Ele, que estampou capas de revistas e esnobou a família para a qual precisa agora recorrer, começa a repensar sua trajetória, lembra os amores, a “porralouquice” da década de 1970, as traições e a felicidade que, assim como o reconhecimento público, ficou no passado.
Quando ele parece ter retomado as rédeas de sua vida profissional aceitando um papel de leve destaque em uma novela bíblica, mais problemas aparecem, desta vez atrelados ao “malabarismo contábil” da produtora do Rei Lear com um empresário que ajudou a aprovar a verba pública do projeto. Tudo errado nesse Rio de Janeiro falido, nada certo nesse Brasil onde o jeitinho sempre é louvado e as dificuldades minimizadas. É com tristeza que o leitor acompanha esse anti-herói contemporâneo do cotidiano. “Foi bonito, devo dizer”, parafraseando o velho Cardoso.
Por email, a autora concedeu uma entrevista ao JC no qual ela fala sobre arte, representação política e sua relação com Pernambuco. Veja na íntegra aqui.