Dicionário mostra várias faces e fases da escravidão no Brasil

O 'Dicionário da Escravidão e Liberdade', organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, traz verbetes sobre a história brasileira
Diogo Guedes
Publicado em 13/05/2018 às 8:09
O 'Dicionário da Escravidão e Liberdade', organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, traz verbetes sobre a história brasileira Foto: Reprodução


Em uma das famosas pinturas “oficiais” sobre a abolição da escravidão, feita por Pedro Peres, a princesa Isabel parece conceder o “presente” da liberdade a uma família negra ajoelhada. Séculos de resistência e conflito são transformados na imagem da abolição como uma dádiva pessoal, onde mais uma vez os negros são meros objetos do imaginário branco e imperial. A tela é uma tentativa – que persiste no imaginário da data de hoje, quando se recorda a promulgação da Lei Áurea – de forjar o fim da escravidão como um evento estanque, feito de cima para baixo, sem lutas, resistências e outros projetos.

A leitura crítica de imagens do passado e um aprofundamento nas várias “faces e fases” do tráfico de escravos e do trabalho forçado no Brasil é o que faz o Dicionário da Escravidão e Liberdade (Companhia das Letras), organizado pelos historiadores Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, uma leitura essencial para entender o que chamamos, com simplismos e enganos, de escravidão. O volume reúne, em suas mais de 500 páginas, 50 verbetes, escritos por pesquisadores, sobre aspectos históricos do escravismo no Brasil e nas Américas.

São textos que falam da escravidão na Amazônia, dos cantos, das revoltas, dos rituais fúnebres, das memórias e das irmandades, entre muitos outros temas. O prefácio é de um dos principais historiadores do assunto, Alberto da Costa e Silva, vencedor do Prêmio Camões em 2014. “Não se estuda o escravismo sem emoção e sem um sentimento de vergonha e remorso”, destaca. “Não faltam neste livro parágrafos sobre a espera, a busca e a obtenção da liberdade. Sobre a liberdade como antônimo de escravidão, mas que com ela coexiste para a ela se opor. Se estes ensaios nos dizem que o passado é sem esperança de conserto, eles não nos deixam esquecer que não há sombra sem luz”, continua.

No início, a proposta dos organizadores era compor um livro linear, com a dupla assumindo o trabalho de narrar a complexa história da escravidão. O projeto foi abandonado ao notar que a obra se beneficiaria do olhar de outros especialistas no assunto, que ajudariam a ver a multiplicidade e a perversidade da trajetória do escravismo nas Américas.

“O Dicionário traz um pouco o ‘estado da arte’ atual sobre a escravidão. Na verdade, estamos falando de escravidões, porque ela não foi uma só, e isso em vários sentidos. Por exemplo, vieram para Pernambuco e Bahia pessoas da África Ocidental e Central, de Angola, Benin, Nigéria. Para o ciclo do café, vieram da África Oriental. Nas escolas, aprendemos que houve o ciclo do açúcar, o do ouro e o do café, mas havia escravos em todo o Brasil e em todos os momentos. Existia uma escravidão doméstica em São Paulo antes do café, a escravidão no Sul, com a charqueada. Então, o livro mostra que nenhum lugar no Brasil escapava à escravidão”, comenta Lilia, autora do volume Brasil, uma Biografia.

Para Flávio, a obra é importante justamente por contemplar a diversidade e complexidade. “Assim, podemos falar do castigo físico e também dos sentidos da família escrava; da maternidade e também do corpo e das teorias raciais, da legislação escravocrata e também das canções negras; sem falar das memórias e suas evocações”, explica.

LIBERDADE

Ao longo de suas páginas, o Dicionário está sempre mostrando a escravidão como um processo cheio de tensões. Se havia o tráfico e a escravidão, era porque havia também uma liberdade para ser reconquistada e recuperada e uma resistência que se fazia presente no lazer, na cultura, em associações e em fugas e revoltas. “A historiografia brasileira e internacional mostra que escravizados e escravizadas eram vítimas, sim, mas não vítimas passivas. As lutas existiam desde o início da escravidão. Havia rebeliões na África Central, Oriental e Ocidental. Temos diversas notícias de rebeliões em navios negreiros, além de rebeliões no Brasil desde o século 16. E essa luta se dá em vários aspectos: dos quilombos até os pedidos para ter dias livres para cuidar da família ou se dedicar aos orixás. Não é possível entender a escravidão sem pensar na sua linguagem da violência: na opressão dos senhores e na resistência dos escravos”, explica Lilia.

Mais do que a luta para sobreviver, a liberdade era exercida na busca por manter suas culturas, universos e rituais. Nos tumbeiros, os barcos que transportavam os escravos, não vinham só pessoas: estavam lá distintos sistemas religiosos, formas de construções, técnicas de trabalhar a terra e a madeira, sonoridades, marcas e estratificações. “Muitas dessas formas de sociabilidade foram recriadas aqui”, comenta Lilia

Outro ponto fundamental do livro, como ressalta Flávio, é a “dimensão atlântica” da obra, ao contrário da visão de isolar o Brasil escravista do restante do mundo. A sobrecapa é composta por uma imagem que ilustra isso: um trabalho do artista Jaime Lauriano, que traz verbetes como pontos do complexo mapa do escravismo e do tráfico. “O tráfico negreiro criou uma África Transatlântica. As fronteiras não eram constituídas, então havia quilombos formados por pessoas trazidas para o Brasil na América inglesa e holandesa. As notícias da Revolta dos Malês (1835) percorreram outros países e chegaram às Guianas, por exemplo, como houve o contrário na Revolução Haitiana (1791-1804)”, ressalta Lilia.

INDÍGENAS

No Dicionário, os verbetes mostram novas facetas ou desfazem enganos sobre o escravismo. Abordam, por exemplo, a ilusão de que a escravidão de índios e negros não aconteceu simultaneamente. “Desde o século 16 nas unidades produtivas – não só na Amazônia – conviviam trabalhadores escravizados (indígenas e africanos) com trabalhadores livres. Tal visão apartada seria também construída para o século 20 sobre a presença massiva de imigrantes”, comenta Flávio. “Aliás, nas áreas de fronteiras, muitos fugitivos e quilombolas do lado brasileiro interagiram com grupos indígenas e maroons no Suriname, Venezuela, Guiana e Guiana Francesa.”

No texto sobre as teorias raciais, Lilia destaca o trajeto do racismo científico no Brasil. “A entrada das teorias raciais no Brasil explicam muito as formas de inclusão durante a escravidão e após o fim dela. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão mercantil no mundo. Quando fez isso, foi com uma lei curta e conservadora. No livro, Ângela Afonso mostra que existiam outros projetos para encerrar a escravidão, mas esse foi o escolhido”, comenta a organizadora.

Segundo ela, a ideia da democracia racial também tem sido uma forma de ocultar o racismo do País. “Não foi um mito construído por uma só pessoa, mas começou a ganhar força nos anos 1930, gerando a imagem que ainda hoje é vendida do Brasil no exterior. Isso teve e tem um papel muito prejudicial na formação de uma consciência crítica, em entender como o passado está inscrito no presente”, continua Lilia.

Flávio, por sua vez, destaca as marcas e permanência da escravidão e do pós-emancipação. “Não há dúvidas que uma delas é a exclusão, o racismo e a cidadania incompleta. Mas também há legados de produção da cultura material e imaterial, entre tantas formas e saberes. Todo o imaginário do corpo do trabalhador, punição, acidentes de trabalho dos dias atuais estão permeados da dimensão da escravidão do passado e suas reinvenção hierárquicas do presente”, aponta. “Questões envolvendo juventude, cidades, gênero, educação, saúde e emprego são temas muitas vezes tratados de forma superficiais ou silenciados no tocante ao impacto racial, seja na desqualificação do sujeito como no silêncio sobre a experiência. Na invenção dos ideais de modernidade, exatamente no pós-emancipação, a questão racial (no seu desaparecimento) e as respectivas implicações étnicas tiveram um papel fundamental.”

Os dois cadernos iconográficos do livro trazem uma série de desenhos, quadros, documentos e fotografias do período da escravidão. Mais do que apenas reuni-los, o Dicionário os expõe com um olhar crítico. “Fazemos um confrontação do imaginário europeu presente nessas obras, que é a da visão dos brancos, da abolição como um dádiva. Ninguém, no entanto, pode dar de presente algo que já é nosso”, comenta Lilia.

Seu interesse é também no que há de agência dos negros no meio do olhar branco – em como se movem no momento fundamental da fotografia. Em uma das imagens, a que abre a matéria, um mercado de escravos é retratado. No canto, um homem desenha ou escreve algo na parede, em um gesto de afirmação da sua presença ali. Se as versões oficiais e conciliatórias tentaram ocultar as muitas escravidões e resistências que existiram no Brasil, o Dicionário é uma aula obrigatória para se começar a entender e lidar, de fato, com a marca do escravismo, presente até hoje no cotidiano nacional.

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