Editora de Graciliano Ramos desde 1975, a Record acaba de renovar seu contrato com os herdeiros do autor por mais 10 anos - até janeiro de 2029. Trata-se de um movimento inusitado, já que pela atual lei de direitos autorais essa obra entra em domínio público em 2024. Portanto, a partir de janeiro de 2024, no ano seguinte ao aniversário de 70 anos de morte do autor, os livros de Graciliano Ramos podem ser publicados livremente, sem a necessidade de pagamento de direitos autorais à família.
Os herdeiros contestam essa informação do domínio público e defendem que pelo tempo que Luiza Ramos Amado, 87 anos, última filha viva do autor, viver depois de 2024, os direitos da obra são da família. Eles se apoiam no Código Civil de 1916, a lei vigente quando Graciliano morreu em 1953. Em artigo preparado para explicar as mudanças sofridas pela lei de direitos autorais ao longo da história e justificar a posição com relação a Graciliano, Silvia Gandelman, advogada dos Ramos, cita os três parágrafos do artigo 649 desse código de 1916. O terceiro, o mais importante para essa discussão, diz: "No caso de caber a sucessão aos filhos, aos pais ou ao cônjuge do autor, não prevalecerá o prazo do artigo 1.° (60 anos) e o direito só se extinguirá com a morte do sucessor".
Mas uma outra questão se impõe. O Código Civil de 1916 só tinha dois parágrafos, e não três conforme citado no texto da advogada O direito se torna vitalício em 23 de outubro de 1958, quando Juscelino Kubitschek altera justamente esse artigo 649 na Lei 3 447 e inclui o tal terceiro parágrafo. Graciliano tinha morrido cinco anos antes.
"Se Graciliano morreu em 1953, a regra que se aplica à sucessão dele para fins de direito autoral é a do parágrafo primeiro do artigo 649, ou seja, 60 anos depois da morte. Com as mudanças que vieram depois, 70 anos", entende o advogado especializado em direitos autorais Gustavo Martins de Almeida.
Ainda assim os herdeiros e seus advogados podem insistir nesse argumento, defender que a lei não retroage para prejudicar e tentar garantir a manutenção dos direitos autorais pelo tempo que puderem. "Se considerarmos que não entrou ainda em domínio público iremos brigar na Justiça, até porque temos contrato com a Record", confirma Ricardo Ramos Filho, neto do autor.
"Essa interpretação não vê os direitos autorais dentro do sistema jurídico. Temos certo que a lei que definirá quem é legítimo para herdar e como será a divisão, por exemplo, é a do momento da abertura da sucessão. No entanto, de forma alguma, a lei vigente no momento da sucessão impõe regime ou características imutáveis aos bens objeto da sucessão - os direitos autorais do autor, no caso", explica Allan Rocha de Souza, também advogado especializado no tema e professor da UFRRJ e UFRJ.
Ele continua: "Ao contrário, a extensão dos direitos de propriedade ou patrimoniais podem ser ajustados e modulados de forma diversa da anterior e sua aplicabilidade se dará imediatamente a todas estas relações que ainda estejam em andamento, ainda que iniciadas anteriormente, como é o caso".
Com 138 edições e 1,7 milhão de exemplares vendidos, Vidas Secas, o livro mais importante de Graciliano Ramos, é o título mais vendido da Record, seguido pelo best-seller de autoajuda Quem Mexeu no Meu Queijo? Natural que a editora quisesse manter o autor por mais alguns anos em seu catálogo que sofreu baixas significativas com a saída, por exemplo, de Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade.
"Essa questão do domínio pública é sujeita a interpretação. Só o Arnaldo acha que a regra é clara", brinca Sonia Jardim, presidente do Grupo Record. "Mas fizemos um contrato diferente, nos abstraindo disso", conta. Ele inclui edições especiais em efemérides, como a de Vidas Secas que chega às livrarias em outubro para celebrar os 80 anos de seu lançamento, um novo site, canal no YouTube, mais investimento em marketing e pagamento de direitos até 2029, independentemente do que ocorrer em janeiro de 2024 quando, admite Sonia, pode haver duas edições de Vidas Secas no mercado. Por eles, isso está ok. "Estamos fechando com chave de ouro. Ao entrar em domínio público, a obra de Graciliano vai estar no auge, e não no apagar das luzes como vemos tanto por aí", conclui.