Alguns livros são o projeto de uma vida; tomam as forças máximas de um escritor, obcecado em terminar sua obra em tempo de vê-la publicada. Para Marcus Accioly, narrar a história do maior galanteador da literatura, Don Juan ou Don Giovanni, como preferir o freguês, não era ter uma obra por terminar: era criar “um livro que me terminasse: a reticência do final da vida”. Com isso, reescrevia, revisava, alterava e ampliava constantemente a obra. Como se fosse destino, o ponto final de Don Juan-Don Giovanni só veio pouco antes do seu autor morrer, em outubro de 2017.
Peça teatral narrada em versos, a obra vai ser lançada quarta (12), a partir das 19h, na Academia Pernambucana de Letras, publicada pela Cepe Editora. O volume póstumo, dedicado a sua viúva, Glória Accioly, é o primeiro inédito de Marcus desde Daguerreótipos (2008) –durante essa década, o poeta continuou a produzir consistentemente, mas sem a preocupação de publicar.
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Don Juan-Don Giovanni traz a versão de Marcus do grande galanteador, com uma lista de duas mil mulheres seduzidas ao longo da vida. Para o amigo e colega Carlos Nejar, a peça é de uma “grandeza épica e trágica”. Além disso, para o autor gaúcho, é póstuma não por ser publicada após o falecimento, mas sim porque “póstumo é o que jamais morreu”.
Na introdução, Marcus, que se descreve como “um poeta que precisa de um herói, para cantá-lo”, deixa clara sua dívida com obras anteriores, citando os títulos de Byron, Tirso de Molina, Mozart, Molière, José de Zorilla e Stefan Zweig, entre outros, sobre os dois personagens. No entanto, forja por conta própria a sua mitologia do sedutor: “Só, não sozinho,/ fiz meu caminho/ só, mas com alguém:/ cinquenta, cem”.
O título já revela uma dubiedade: Marcus falaria de Don Juan, o galanteador espanhol, ou Don Giovanni, o sedutor italiano? Na verdade, ele une os dois em um só, como se fossem o mesmo homem que habita um só corpo. “Don Juan mata nossas sedes,/ Don Giovanni nossas fomes”, uma mulher define durante a peça.
DESAPARECIDO
Além disso, habilmente, o livro tem início com Don Juan, sedutor já famoso, desaparecido depois da vingança de Don Gonzalo, transformado em uma estátua de pedra depois de perder um duelo. Enquanto as mulheres choram a perda do amante inesquecível (“na minha cama,/ não era um homem,/ era uma chama” ou “ao percorrer o meu corpo/ com tal prazer, tal delícia,/ que não sei se era carinho,/ se cuidado, se carícia,/ se habilidade, se prática,/ técnica, astúcia, perícia”), Giovanni se encontra com o Diabo.
Durante a narrativa teatral, sempre na cadência cuidadosa da poesia de Accioly, transparece o fascínio do autor pelo assunto. Vivina, uma das personagens, é quem fala: “quem conhece a um só homem,/ talvez a todos esteja/ conhecendo, mas, no caso/ da mulher é diferente,/ se alguém conhece só uma,/ conhece aquela somente”. Ao longo de dez jornadas, Don Juan-Don Giovanni passa pelo julgamento do protagonista e pelos seus diálogos com o Diabo. É uma homenagem (talvez estranha para os dias atuais) à mitologia do amor instantâneo dos famosos personagens e de um homem que sonhava seduzir a própria morte: “pois, seguir sem ser seguido,/ era o seu próprio caminho”.