Diante da notícia de que o Museu Nacional do Rio de Janeiro, um dos maiores acervos do mundo em história natural e antropologia, havia pegado fogo, o escritor Fernando Monteiro, como muitos, não conseguiu dormir. A perplexidade às vezes só pode ser enfrentada com a palavra, como a literatura mostra em alguns casos, ainda que a escrita também esteja sobre choque. Fernando Monteiro começou e terminou no mesmo setembro do ano passado as cinco partes do poema Museu da Noite (Confraria do Vento, R$ 30), registro do incêndio que destruiu até mesmo as histórias “que imaginamos/ para nós mesmos”.
A obra, acrescida de mais uma parte, Os Sete Pilares da Apostasia – referência ao clássico livro de T. E. Lawrence –, foi lançada no início deste ano. Nesses poucos meses, o incêndio do Museu Nacional parece quase tragicamente esquecido, como se o Brasil tivesse prometido para si mesmo catástrofes ainda maiores. A longa noite de que Fernando Monteiro – autor de obras essenciais das últimas décadas, como Aspades, ETs, Etc e A Cabeça no Fundo do Entulho – fala, de alguma forma, de um “incêndio (literalmente) do Brasil" em um museu que ele visitou diversas vezes para escrever o romance A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro.
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“Era uma espécie de Hermitage (museu de São Petersburgo, na Rússia) perdido no alto da Boa Vista, recolhido e meio solitário como é a nossa História entre sustos & equívocos, mortes & vidas, clamores & silêncios da Senzala e da Casa Grande, do Sertão e da Cidade, do Império e da República impiedosa que tivemos, logo no seu alvorecer sangrento por sobre a matança de Canudos e outros ‘arraiais’ cheios de sóis e sinais da ‘geografia que é destino’”, aponta o escritor. “Creio, então, que era meu – pequeno – destino escrever este poema logo ao primeiro impacto das chamas transmitidas ‘coast to coast’. Ninguém, talvez, ficou imune naquela noite de horror.”
Fernando traz ao longo do poema uma tentativa de ir além do silêncio insone, recusando as imagens dos clichês televisivos, com ares de quem lamenta com afetação a perda de um conhecido distante, imaginando (de forma falha) a sua importância. “Na falta de palavras/ para descrever o Museu ardendo/ em frente ao lago dos cisnes/ importados”, escreve. O poeta Alberto Lins Caldas escreve no prefácio da obra que o autor recupera a função básica da poesia: “dizer o mundo enquanto ele é destruído, anulado, transformado em pedras de estados, exércitos e fábricas”.
CRISE OCIDENTAL
De certa forma, Museu da Noite parece falar de uma “civilização (ocidental) em crise profunda”, como fala Fernando. “Há um desejo de morte entre nós (no Ocidente, pelo menos)”, comenta o poeta. “Mas o fato é que não saímos da noite por toda parte, não deixamos, ainda, essa escuridão que se vê na arte crepuscular que está sendo produzida no mundo inteiro (ou, então, meramente replicada daquilo que, um dia, já foi luminoso, etc).”
Em Mattinata, poema de 2012, Fernando reverberava uma questão: “e para quer ser poeta em tempos de penúria?”. Essa tensão interna parece estar presente também em Museu da Noite. O final do século 20, para o autor, trouxe a fatura final do humanismo que poderia ter se reerguido ao final da Segunda Guerra. “Aprendemos alguma coisa disso? Não parece. Somos melhores? Não: somos piores, ao que tudo indica. A poesia ainda é possível, depois de Auschwitz?”, pondera. “Eu não posso ter – e acredito até que ninguém tenha – uma resposta para esse questionamento: ‘porque escrever, hoje em dia, em um contexto como o de hoje no Brasil e no mundo?’.”
Na segunda parte de Museu da Noite parece ainda mais presente a tensão dessa poesia que se sente inútil, mas é justamente por isso que ela é mais aguda. “Quanto a mim – e no caso do poema ‘desencadeado’ pela tragédia do Museu Nacional – eu só poderia tentar me conciliar (digamos assim) com o desastre incalculável do começo de setembro, naquela sétima porta do inferno da Quinta da Boa Vista, através da descida, mais uma vez, ao planeta esquecido da poesia”, fala, como um explorador solitário das palavras que as pessoas não querem mais visitar.
“Não vi outra maneira de dormir, nas semanas seguintes, senão tentando exorcizar chamas que não se apagam, num país cujo incêndio prossegue, a frio e a quente. Nossa noite não é mais ‘criança’ – mas pode vir a ser, agora, mais uma terrível noite das facas longas...”, lamenta, lembrando dos assassinatos cometidos pelos partidários de Hitler quando o líder nazista se tornou chanceler da Alemanha.
Museu da Noite já está sendo traduzido por J. P. Serrato, com previsão de publicação ainda em 2019 no México. No prefácio, Alberto Lins Caldas cita o conceito grego da parresía, o dizer a verdade como um compromisso ético e estético, não importa o perigo, o incômodo ou a inutilidade disso. Talvez não exista definição mais precisa para a literatura de Fernando Monteiro: o mal-estar da busca pela substância de fato da nossa vida em meio a um país que continua tomado por incêndios e longas noites.