Reciprocidade
Neste momento em que o frevo acaba de ser declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade, pela Unesco, os pernambucanos têm uma preciosa oportunidade de repensar sua relação com o principal gênero do nosso carnaval. Embora as manifestações populares pelo gênero sejam evidentes e insofismáveis, há motivos para nos preocuparmos com o futuro do frevo. Há tempos, venho batendo na mesma tecla sem que haja uma mobilização consistente sobre o tema. O frevo sumiu das programações da maioria da rádios - com honrosas e raríssimas exceções - no que pode ser considerado um verdadeiro atentado contra nossa identidade foliã mais visível e mais aclamada dentro e fora de Pernambuco.
As rádios são concessões públicas e, por sua vez, deveriam por lei zelar pela cultura brasileira. Em vez disso, infestam suas programações com música de má qualidade, estrangeira, comercial ou pasteurizada. Não aceito o argumento bobo e infantil de que "as rádios tocam o que o povo gosta", como se não houvesse um domínio, uma relação de superioridade entre os grandes monopólios da indústria do entretenimento e as imposições do capital e dos lucros industriais sobre suas programações. Caso não haja uma mudança de filosofia, os danos de hoje podem se estender por gerações. Os novos talentos se espelham em artistas consagrados, mas se determinado gênero não toca, eles se espelharão em estilos de qualidade precária que povoam os dials.
Na minha opinião, os artistas deveriam fazer uma vigília diante das rádios e exigir que o frevo volte a fazer parte de suas programações. Manifestações populares evidenciam que o povo pernambucano ama o frevo e quer que ele predomine no nosso carnaval. Por que será então que determinados meios de comunicação insistem em fechar os olhos para esta realidade e continuam a nos oferecer seu cardápio insosso, seu hambúrguer requentado com sabor de lixo cultural glamurizado?
Uma das maiores características do carnaval de Pernambuco é o ato de as pessoas fantasiarem-se nas ruas e nos bailes. Toda vez que me apresento no Baile Municipal fico emocionado ao ver as pessoas incorporadas em piratas, palhaços, papangus, pierrôs, colombinas e sinto a pernambucanidade aflorar de maneira contundente e arrebatadora em cada folião que canta comigo meu repertório carnavalesco de frevos, maracatus e cirandas. Entretanto, não suporto bailes onde as pessoas se comportam como outdoors ambulantes, fardadas de camisetas com a marca de algum patrocinador. Isso me causa dor.
Outro ponto que considero relevante nesta discussão é o que chamo de projeto reciprocidade. É notório que o nosso carnaval tem se mostrado demasiadamente generoso com artistas de todos os estilos e de diversas regiões do Brasil. A recíproca, no entanto, está longe de ser verdadeira. Proponho uma ação diplomática entre as secretarias de Cultura e Turismo dos estados e dos municípios, de modo que os artistas pernambucanos frequentem eventos de outros estados com a mesma assiduidade com que os artistas de todo Brasil vêm mostrar seus trabalhos por aqui. A cada vez que promissores nomes da nova cena musical brasileira venham formar público em Pernambuco, será de muito bom tom que os novos artistas pernambucanos tenham palco em outras praças - o que nem sempre acontece.
O frevo sumiu das programações da maioria da rádios - com honrosas e raríssimas exceções - no que pode ser considerado um verdadeiro atentado contra nossa identidade foliã mais visível e mais aclamada dentro e fora de Pernambuco.
A mistura multicultural é uma proposta elogiável, mas é preciso que se analise direitinho para que os conceitos não se percam, culminando numa indesejável diluição da identidade artística e cultural de Pernambuco. A rigor, trata-se de uma reflexão que precisa ser estendida à própria cultura brasileira, formada atavicamente pela miscigenação entre diversos povos e culturas. Nossa matriz portuguesa, cuja influência é visível nas melodias dolentes de nossos frevos de bloco, é formada pela mistura das influências celtas, árabes e galegas. Fala-se muito em africanidade, mas esta atualmente tem de passar pelo soul americano (vide os trejeitos e afetações dos participantes de tantos programas de televisão), como se cantar com "alma" tenha que ser algo mais ligado ao espírito anglófono do que às próprias entidades africanas. Informo aos candidatos a cantores que a nossa alma não é soul e que existem voos diretos para Angola, sem precisar fazer escala no Bronx, no Harlem ou em Detroit. Os americanos sabem como ninguém valorizar sua cultura. Valorizemos a nossa.
Tenho utilizado constantemente as ferramentas das redes sociais e acredito que a internet possa representar uma mudança nestes novos paradigmas, uma vez que esta tem mais condições de se distanciar da manipulação do comércio, do dinheiro e do jabaculê que assolam as relações entre a cultura e a indústria de entretenimento pós-modernas. Como artista e pensador, me considero um ser planetário e sonho o dia em que teremos um mundo sem fronteiras, sem barreiras culturais ou econômicas. Mas enquanto elas existirem sou mais brasileiro e mais pernambucano.