Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e dono do site Proibidão.org, o musicólogo Carlos Palombini pesquisa o funk, especialmente o proibidão, vertente socialmente condenada por fazer apologia ao crime. Em entrevista ao Jornal do Commercio, ele rebate as críticas de intelectuais ao pancadão e comenta a prática de criação experimental do funk e suas relações com o mercado.
JORNAL DO COMMERCIO - No artigo Como tornar-se difícil de matar você traça uma cronologia das batidas do funk a partir do Volt Mix, Tamborzão e Beatbox até por volta dos anos 2000. E quanto ao funk dos anos 2010, como você o analisa em termos sonoros e estéticos? É possível dizer que há uma relação maior como trap rap norte-americano?
PALOMBINI - Se há bases rítmicas padrão para cada época, aproximadamente correspondentes aos anos 1990 (Volt Mix), à primeira década dos anos 2000 (Tamborzão) e aos anos 2010 (Beatboxes), há também procedimentos característicos de variação. Os anos 1990 são marcados pelo uso de diferentes bases, versões instrumentais, geralmente no lado B de singles importados, das quais a mais popular foi o “808 Beatpella Mix”, habitualmente designado por “o Volt Mix”, utilizado de modo contínuo ou na forma do loop de seus compassos iniciais. Essas bases advinham de uma variedade de gêneros, entre os quais o electrofunk, o electro de Nova York, o electro de Los Angeles (é o caso do Volt Mix), o hip-hop da new school, o Miami bass, o Latin freestyle etc. — por esse motivo, é uma generalização grosseira dizer que o funk carioca derive do Miami bass.
No caso da putaria, que conheço menos e portanto não coloco em perspectiva histórica, uma das característica dos MCs TH e Maneirinho, dois dos mais bem sucedidos, é o lançamento ou a divulgação de expressões ou frases que passam a conotar diferentes modalidades de pertencimento em situações cotidianas de acordo com o sujeito que as enuncie: “chefe é chefe, né pai?”, “hoje eu tô demais”, “os menó é sagaz”, “várias danadinhas no contatinho do pai” etc.
Por análise de um dos sucessos do MC Bin Laden, Passinho do faraó, eu diria tratar-se de um caso sui generis de uma espécie de humor que, embora não raro no funk, se vê levado aqui aos extremos do surreal, do onírico, do dadaísta, do metafísico (no sentido da pintura Metafísica). Refiro-me aqui ao primeiro vídeo de “Passinho do faraó”, lançado em 19 de abril de 2014. Pode-se fazer emergirem essas características por comparação com “Ralando o Tchan”, de 1997. Ao invés das areias escaldantes, a tumba;ao invés da “neguinha maravilhosa”, quatro homens, nenhum estereotipicamente bonito; ao invés das sonoridades evocativas de orientalismos híbridos, apenas o tum-ba, tum-ba, tum-ba entremeado das curtas emissões vocais superagudas do MC Brinquedo, e, a certa altura, um beatbox sem qualquer reverberação; ao invés de danças sensuais, movimentos constrangidos, mumificados; ao invés de sorrisos dentifrícios, lábios relaxados e olhos revirados ou perdidos; ao invés da câmara lambe-bunda, uma câmara fixa, tremebunda. Um conjunto de signos vocais e gestuais que evoca as poéticas dramáticas de Antonin Artaud e Jerzy Grotowski e é funkeiro no melhor sentido da palavra. No Passinho do faraó não há sequer passinho, e isso faz sentido.
PALOMBINI - No caso de Caetano parece-me uma demonstração de seu oportunismo e de sua incapacidade de autocrítica, nada que não se espere dele. Você não a citou, mas os casos de Marcia Tiburi e Vladimir Safatle são preocupantes na medida em que ambos têm aspirações políticas: Tiburi fundou um partido; Safatle é ou foi pré-candidato do PSoL à presidência da república. Quando se leva em conta tratar-se de duas candidaturas de esquerda, é alarmante. Respondi a Tiburi no
texto que abriu o website Proibidão.org. Adriana Facina, Mariana Gomes e eu respondemos a Safatle em
artigo que será publicado este ano. Tiburi não domina sequer o vocabulário da discussão que entabula. Em Safatle, apontamos cinquenta falácias, inadmissíveis num filósofo. O que esses textos demonstram é o apartheid entre certas esquerdas e a vivência de setores das classes populares.
A Xexéu, ilustre desconhecido, autor de um ataque sub-reptício à candidatura do deputado Marcelo Freixo à prefeitura municipal,
respondi aqui. Minha colega Carla Mattos deu-se ao trabalho de responder ao pedantismo desinformado de certo senhor que responsabiliza a esquerda, cujos textos relevantes não leu, pela cultura do estupro, que grassaria no funk carioca
(aqui).
Todas essas críticas — e eu poderia citar ainda as que pululam naquele blog defunto de nome hipermásculo, o Mingau de Aço — fundamentam-se numa combinação de ambições políticas com desconhecimento de causa e de literatura, às quais serve de molho muito Adorno não lido ou mal digerido. Mas nem todo o campo da esquerda está tomado por tais espécimes. Além dos supracitados, menciono Carlos Batista, Eduardo Baker, Danilo Cymrot e Dennis Novaes. Na musicologia, há Samuel Araújo e Thomaz Pedro.
JC - MC Bin Laden foi o único brasileiro escalado para a programação do Museu de Arte Moderna de Nova York para um evento que reúne artistas de “música eletrônica experimental” de todo mundo. O que isso representa para o funk e a música brasileira hoje?
PALOMBINI - Para o funk como um todo, um reconhecimento tardio que pouco o afetará em suas dificuldades cotidianas. Para a música brasileira, uma bofetada. É Bin Laden quem indica a Safatle, a Tiburi e a tutti quanti seus lugares na cultura, e não o contrário.