Um novo baiano completa hoje 70 anos. Antonio Carlos Moraes Pires, ou Moraes Moreira, baiano de Ituaçu. A festa de aniversário vai ser no salão nobre da Sede do Clube de Regatas Flamengo, na Gávea, Zona Sul carioca, o clube de coração do cantor, cujas sete décadas foram pontuadas por música e futebol:
"Sempre teve futebol na minha vida. Era colecionador da Revista dos Esportes, tinha umas 300 revistas, acompanhava tudo, sabia tudo dos craques. Adorava aquelas seções, O Craque na Intimidade, Bate-Bola com o Craque, adorava aquilo. Desde Ituaçu que me apaixonei pelo vermelho e preto, e escutava pela Rádio Nacional, Radio Tupi, Mayrink Veiga, conhecia os bairros do Rio através dos times, Gávea, Laranjeiras, Bonsucesso, Botafogo. Fiz duas canções pra Zico, uma pro Flamengo, e a Seleção Brasileira", explica Moraes.
Ele mesmo animará a festa com um show especialmente preparado para o dia: "Vamos comemorar, com meus amigos, e com jogadores do Flamengo, craques de todas as épocas. O clube é um lugar que tem a ver comigo, sou Flamengo desde menino, sou amigo de Zico, de todos os jogadores, vai ser um aniversário supercaseiro pra mim", diz o cantor.
O lendário sítio dos Novos Baianos, em Jacarepaguá, abrigava um campo de futebol onde aconteceram peladas com participação de muitos craques profissionais, que jogavam com o Novos Baianos Futebol Clube, time que não ganhou campeonato oficial, mas tinha fama nacional. Moraes Moreira jogou na linha de frente de uma geração que queria mudar o mundo. Todas gerações são imbuídas do mesmo desejo, mas a dos anos 60 foi a que chegou mais perto da utopia:
"A gente quebrou muito tabu, a maneira de ver o mundo, de buscar uma coisa mais universal. A própria chegada da tecnologia foi ajudando também, essas coisas foram andando juntas. Nós, Os Novos Baianos, vivemos radicalmente isso, quando moramos no sítio. Vivemos ali durante cinco ou seis anos. Foi legal, teve seus atritos, teve tudo, mas o saldo foi muito positivo. Era a ditadura, mas a gente estava ali no nosso estado de sítio, nos preservando contra polícia, contra tudo. Eles não podiam ver cabeludos, pessoas com roupas coloridas, de ideias diferente e a gente era tudo o que aquele sistema vigente não queria. Mas fomos sobrevivendo, driblando aqui, acolá, fazendo uma linguagem que eles não entendiam, e foi passando".
IDADE
Os Novos Baianos é um grupo que criou sua versão brasileira de rock, um gênero que ainda hoje é intrinsecamente ligado à jovem, juventude, juvenilidade, mesmo que um de seus criadores, Chuck Berry tenha morrido este ano com 91 anos, e ainda fazendo rock and roll (tinha terminado mais um álbum quando faleceu, em março de 2017). Paul McCartney continua na estrada com 75 anos, os velhos baianos, Caetano e Gil já estão alguns anos além dos 70, assim como Moraes Moreira:
"A idade tira umas coisas, mas te dá outras. Para a velhice, usando esta palavra drástica, só há um jeito: tornar-se um sábio. Aquela coisa, quem corre é a bola, você se coloca melhor no campo. Você precisa ter a sabedoria de poder administrar a limitação física que a idade traz, compensar isto com a experiência, com a sabedoria. Por outro lado, a própria ciência hoje permite uma maior longevidade. Antigamente, com 50 anos, o cara já estava de pijama. Estou com 70 ainda na estrada".
Dia 5 de agosto, Os Novos Baianos aportam com a formação original no Classic Hall, com a turnê Acabou Chorare - Os Novos Baianos se Encontram, celebrando seu disco mais icônico (e aqui vale o termo tão surrado pelo excesso de uso). Surgido em 1968, Os Novos Baianos tiveram como padrinho o conterrâneo Tom Zé:
"O Tom Zé foi meu mestre de violão, no começo, foi inclusive o conselheiro dos Novos Baianos. Foi ele quem apresentou Galvão (seu parceiro musical) a Moraes, foi quem ensinou violão a Galvão. Depois veio João Gilberto. Os dois pilares dos Novos Baianos são Tom Zé e João Gilberto". Os Novos Baianos sofreram influências do tropicalismo, mas éramos pós-tropicalistas. Éramos mais da rua, mais desorganizados. Às vezes a gente não tinha onde morar. Moramos no carro de Galvão, um Alfa Romeu, que não sei que fim levou. Eu já estava aqui no Rio, ele trouxe o carro de Juazeiro da Bahia pra cá. Ficamos morando nele durante quase dois meses. A gente encostava o carro num lugar e dormia”.
Aos 24 anos Moraes Moreira morava no célebre sítio com os integrantes do grupo, e agregados, esposas, namoradas, crianças, uma experiência de liberdade que se tornou conhecida e copiada Brasil afora. O modo de viver dos então muito jovens baianos era tão badalado quanto os sucessos que, em 1972, tomaram de assalto as rádios do país. Preta Pretinha, Acabou Chorare, Mistério do Planeta, Brasil Pandeiro (de Assis Valente), A Menina Dança. A polícia chegou a dar batidas no sítio, à procura de drogas. Lá, obviamente, fumava-se cannabis em quantidade apreciáveis. Um dos moradores mandou tudo pela descarga num dos "baculejos":
"A maconha continua proibida, mas no Uruguai já não é proibida, nem na Holanda. Já existe toda uma luta pra mostrar que a maconha não é este absurdo. Não estou aqui pra levantar bandeira, mas liberdades estão sendo alcançadas, a evolução vai se dando, aos poucos, mas vai caminhando". Aos 70, Moraes não se vê mais morando em comunidade: "Já passamos pela experiência, hoje quando os Novos Baianos estão juntos, estão em comunidade. Hoje a gente é tranquilo, Mas a Baby, se fosse por ela, ainda estava no sítio. Lembro que o Chico Science fazia um pouco isso, com a turma dele aqui no Rio. Nós vivemos aquilo durante cinco ou seis anos".
Moraes Moreira, no entanto, descobriu que o sonho tinha acabado em 1974, quando deixou a comunidade, e o grupo. Mas não saiu para se lançar como artista solo: "Saí porque na época o pessoal ficou muito radical. Não podia isso, não podia aquilo. Toda coisa que fica exacerbada beira o fanatismo. Porém, foi boa minha saída pra quebrar um pouco isso. O grupo continuou, fez alguns discos, depois se desfez. Nos anos 90, nos encontramos, fizemos um disco. Estava escutando esse disco, e achei muito bom. E agora estamos juntos novamente. A vida está sempre marcando um encontro com a gente, e não temos como fugir".
Ele deixou a comunidade dos Novos Baianos quando o comportamento politicamente correto começava a impor limites: "Acho o politicamente correto muito chato. Se fosse escrever Preta Pretinha agora, seria afrodescendentezinha. Luiz Gonzaga dizia ‘Chega aqui nego véio’, uma coisa de um carinho imenso. Hoje se chamar assim, o cara vai achar que é preconceito. O politicamente correto fez o pessoal perder o humor perder tudo. Vejo esta coisa hoje com muita tristeza".
O setentão baiano, quem diria, virou ídolo da juventude. As plateias dos Novos Baianos é formada, em sua maioria, por gente na faixa dos vinte e anos, até menos: "é uma loucura isso da juventude na nossa vida, todo mundo cantando tudo, como se fosse da época deles. Menino de 17 anos dizendo que queria ter morado no sítio, ter a vida da gente. Muitos querendo saber nossas histórias, indo nos assistir. Se a gente fosse depender do pessoal da idade da gente, os shows estariam vazios. Os jovens querem uma coisa que soe verdadeira, que tenha uma história, música com bons arranjos, melodias e poesia".
Por telefone, ele manda um alô para Pernambuco, onde se "asilou" ao se insurgir contra a ditadura do axé nos anos 80: "Discordei daquela dominação da axé, do espaço público, das rádios, de tudo. O carnaval, que era do povo, tornou-se privatizado. Eu, que já namorava Pernambuco, fui pro Recife. Pernambuco foi um clarão na minha vida