Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano, biografia do cantor cearense, falecido em 30 de abril de 2017, não deve ser tomada como uma investida oportunista da editora Todavia ou do jornalista J.B Medeiros, que a assina. Ele foi procurado pela editora, dois anos atrás, para escrever sobre um artista da música popular, não necessariamente Belchior. Mas quase todos os nomes sobre os quais ele gostaria escrever, já tinham biografias nas livrarias. Belchior foi o escolhido quase por exclusão. Coincidiu de, durante a feitura do texto, o cantor se tornar uma espécie de novo ídolo da juventude brasileira. Na sequência, aconteceu o bizarro episódio do “desaparecimento” de Belchior, que teve sua morte como desfecho inesperado, deixando o mistério no ar.
Jotabê Medeiros não desvenda o mistério, embora ocupe várias páginas da biografia com a fase conturbada da derradeira década de vida de Belchior, e dos últimos capítulos do livro, em que conta a trajetória do cantor a partir de sua passagem pelo mosteiro dos frades capuchinhos, na Serra de Guaramiranga, região do Ceará de clima ameno, hoje conhecida pelo festival de jazz que acontece ali durante o Carnaval. “Numa manhã nebulosa e melancólica de 1964, poucos meses antes do golpe militar no Brasil, iniciou seus estudos em Guaramiranga, uma turma de 14 noviços capuchinhos. Entre eles, destacava-se o Frei Francisco Antonio de Sobral, um rapaz de dezoito anos, de rosto geométrico como um cartum de Nássara, memória prodigiosa, além de uma facilidade despresunçosa para escrever. A escolha do nome Sobral foi de um bairrismo orgulhoso, mas essa seria uma de suas raras concessões à cidade natal ao longo de toda a vida”.
O autor descreve em minúcias a vida do jovem Belchior no claustro, no qual passou três anos, e alicerçou sua formação literária. O sobralense Antonio Carlos Belchior já era um leitor voraz, e no mosteiro teve tempo de consumir clássicos como Os Lusíadas, de Camões, ou A Divina Comédia, de Dante, uma fixação que o acompanharia até o final da existência. Não apenas a ler, mas também a escrever, e compor. Frei Hermínio, contemporâneo de Belchior no mosteiro, sugere que Galos, Noites e Quintais, um dos clássicos da obra do cantor, teria sido criado em Guaramiranga. Ficou em posse dele uma pasta com a produção literária do
amigo, que desistiu da carreira religiosa em 1966.
Ele recomendou que Hermínio queimasse o conteúdo da pasta, o que ele não fez. Mais tarde a devolveria a Belchior. “Anos depois eu percebi que tinha comigo ainda a cópia de um dos textos, é uma relação de pares de formigas. Ele escreveu esta peça satírica ao saber que um cientista planejava cruzar formigas de diferentes espécies”, contou Hermínio ao autor da biografia, que reproduz o texto no livro, uma brincadeira com palavras. “Formiga-de-roça com formiga-de-açúcar/formiga-branca com formiga-preta/formiga-asteca com formiga-caiapó”, mera curiosidade.
Belchior costumava dizer em entrevistas que vinha de uma família de 23 filhos. Não foram tantos, mas o suficiente para confundir o escrivão do cartório de Sobral, quando o pai, Otávio Belchior, ia registrá-los. Belchior não recebeu no registro o Fontenelle, sobrenome da mãe, nem o Fernandes, do pai. Chamava-se apenas Antonio Carlos Belchior. Quando começou a ficar famoso dizia-se Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes (às vezes, atribuía-se mais um “Moreira”). Queria um nome longo como Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, ou Caetano Emanuel Vianna Teles Veloso, para equiparar-se até aí aos grandes nomes da MPB, que dominavam o cenário quando ele retomou a vida profana. Pela biografia sabe-se pouco da infância e adolescência de Belchior, tanto em Sobral quanto em Fortaleza, para onde a família mudou-se quando ele estava com dez anos.
Por sua vez, o retrato do artista quando jovem, pintado na biografia, revela pouca coisa que não se saiba das entrevistas dos músicos e cantores que faziam a música cearense na segunda metade dos anos 60, em Fortaleza. A capital cearense, como as demais capitais fora do eixo Rio/São Paulo, recebia as influências de uma fase efervescente da cultura brasileira, sobretudo da música popular. O que segue, e está bem documentado no livro, é a ida do talentoso “pessoal do Ceará” para o Rio ou São Paulo. O sucesso de uns poucos, Belchior, Fagner, Ednardo, Amelinha. Quem acompanhou na época já sabe, quem descobriu Belchior mais recentemente aprenderá.
Jotabê Medeiros baseia-se na pesquisa em publicações que documentaram essas lucubrações, e no que está nos jornais. Para os novos fãs de Belchior a biografia complementa o que sabem sobre o ídolo, mais influente atualmente do que quando esteve no auge do sucesso, entre 1976 e 1980. O centro das atenções do autor é mais a obra do biografado, o que ele já avisa no prefácio: “A história que segue é principalmente aquela que eu aprendi nos discos. Para entendê-la com mais acuidade aconselho a colocar para tocar aquela sua playlist favorita, porque é uma história que se faz com mais clareza assim”