Depois de brilhar no Coquetel Molotov de 2015, a banda goiana Carne Doce retorna ao Recife para abrir a série de prévias da edição 2017 do festival. Um ano após o lançamento de seu elogiado álbum Princesa, a vocalista e letrista Salma Jô, em conversa por email, fala sobre o amadurecimento e consolidação da banda no cenário nacional, o circuito de festivais e faz uma auto-análise de suas músicas.
JORNAL DO COMMERCIO - Quando o Carne Doce passou em Recife na última vez apresentou algumas das músicas que estariam em Princesa (lembro particularmente de Cêtapensano). Como vai ser o repertório dessa vez? Tem música nova?
SALMA JÔ - Acho que foi só Cetapensâno mesmo. Já estamos compondo o terceiro disco, mas ainda não tocaremos músicas novas. Vai ter mais de "Princesa" e algumas do primeiro disco. Mas desde que tocamos em Recife, em 2015, já melhoramos demais, aperfeiçoamos o show,.
JC - Na última passagem, vocês rodaram o Nordeste a partir de duas datas em festivais (Coquetel Molotov e DoSol). Desta vez vocês retornam ao Recife, mas com um show solo. Você e o Macloys [guitarrista da banda e namorado de Salma] falavam sobre o sonho de "viver de música" e como vocês estavam investindo nisso tudo. Hoje, com o segundo disco lançado e bem recebido mais passagens por vários festivais do Brasil, vocês conseguem viver apenas da música?
SALMA - Sim, e que bom poder dar uma resposta positiva finalmente! Até pouco tempo a gente ainda duvidada se era mesmo possível ou ilusão. Nós não temos estabilidade, não temos uma boa poupança, não sabemos como vai ser dezembro, mas estamos vivendo basicamente dos shows banda. No início do ano o Mac deixou o emprego que trabalhava como jornalista. O Anderson [Maia, baixista], ainda faz uns freela de publicidade, ele leva um estilo de vida mais caro que os nossos ganhos, mas tudo bem, estamos indo bem.
JC - Como você enxerga o papel ou a relevância dos festivais nesse mercado da música independente? Me parece que, ao mesmo tempo em que eles podem projetar um artista, este sistema de festivais é muito sazonal (dificilmente se toca no mesmo festival mais de uma vez) e inconstante. Alguns músicos falam nos bastidores de eventos que têm uma marca estabelecida, mas pagam pouco, de modo que as bandas só fazem "trabalhar para a marca".
SALMA - Tem uma mística sobre os festivais, sobre a experiência de comunhão e celebração do mundo independente que eles proporcionam, até jornalistas se fascinam com isso, mas a gente sabe que acima de tudo é um modelo de negócio específico, com riscos específicos. Nas primeiras vezes em que a gente tocou em festivais teve muito de tocar por um cachê que não cobria os custos, mas pela possibilidade de aparecer, profissionalizar, ganhar experiência de palco, fazer currículo, abrir território, e são esses argumentos que os produtores usam para convencer as bandas novas a aceitarem condições não muito favoráveis, e de fato esses resultados vieram muitas vezes. Quando tocamos no Nordeste a primeira vez foi assim, foi um investimento, e para fazer essa tour agora e para vendermos o nosso show desde então, foi uma moeda que usamos, valeu a pena.
Tem condições que às vezes acho pior que um cachê baixo, não ter passagem de som por exemplo. É algo que o público não toma conhecimento, os jornalistas não escrevem sobre, os artistas não vão reclamar publicamente porque é queimação, e é das latadas mais comuns que as bandas passam, o show é inútil e o que você leva pra casa são as fotos e o nome no line up, e isso até que ainda dá pra vender. Tocar muito cedo ou tocar num line up gigantesco também não é interessante como é de se imaginar.
A inconstância e sazonalidade não vejo como problemas, as vezes até vantagens. São muitos festivais, dá uma agenda cheia, permite circular pelo país de forma mais estratégica, permite chegar em cidades que seriam muito menos receptivas, em um público que é do seu nicho, mas que talvez não lhe conheceria por conta apenas da sua própria marca. Eu particularmente gosto do formato e do desafio da performance.
JC - Princesa fez um ano de vida em agosto. Como você avalia o disco hoje? Nesse tempo, com tantos shows, resenhas e comentários, você mudou alguma percepção que tinha sobre o disco ou uma música em específico?
SALMA - Mudei minha percepção especialmente sobre Falo, mas vou falar dela abaixo. Eu já tenho muito mais críticas à minha performance na gravação e às letras, claro, mas ainda acho que é um disco bom, interessante, e que é um aperfeiçoamento do nosso estilo, de nós como banda, do que fizemos antes. Hoje eu sinto que ele ficou longo, que deveria ter sido mais sucinto talvez, mas me lembro que isso foi algo que sentimos que era adequado no momento.
JC - Falo é uma música que veio ao lado de toda uma discussão sobre representatividade e feminismo. Por outro lado, recentemente você vem criticando o que parece ser uma "commoditização" do feminismo e a militância identitária, certo? Acredita que, neste contexto, Falo ainda é uma música necessária/atual ou tornou-se insuficiente para lidar com estas complexidades?
SALMA - Eu achava que Falo já entregava nuances disso, dessa política identitária, ou isso ou eu me acomodei mesmo, fui condescencendente comigo mesma e fingi que a letra supria isso. Hoje eu acho uma letra fraca, e ao mesmo tempo ainda investigo porque ela é tão "forte", meninas e meninos cantam ela de cabo a rabo com força, empolgadíssimos. Me recordo de tentar avaliar como ela poderia ser interpretada como parte do "case feminista" depois de publicada. É claro que ela satisfaz justamente esse comportamento bem comum entre eu e meus/minhas colegas e que combina com essa política de lugar de fala: egocêntrico, intolerante, raivoso, esgotado. E essa critica não está lá na letra, mas precisava? Talvez ela conte com essa auto crítica que não acontece. Eu sinto que falhei, mas ainda não sei bem como deveria ter feito melhor. Atual ela é, nunca a julguei necessária, muito menos hino, eu sonhei que ela fosse o contrário, um espelho, um lance mais feio de se ver, como muitas outras letras.
JC - Você já falou que te interessa "a perspectiva do desejo, da celebração do sexo" e o Carne Doce no palco me parece ser muito dessa linha. O corpo parece estar colocado ali como um dispositivo politico, que não entra nem no campo dos renegados ou na suavização poética. Pode comentar sobre essa questão do corpo/performance? De que forma a sensualidade (ou seria a celebração da putaria?) é um ponto de interesse?
SALMA - Sinto que o rock/indie anda meio pudico demais. As letras quase não exploram isso, ou exploram com vergonha, e os corpos são no geral mais tímidos e fechados. Eu sempre curti o contrário, esse lance da performance rockstar sempre me fascinou, e mesmo que o som às vezes não me emocionasse a performance o fazia. E é um lance também da velha guarda de Goiânia, de até pouco tempo e ainda com certa resistência, quando o stoner e o metal comandavam; os shows eram sempre muito performáticos, tinham muita força e sensualidade.
Na minha história no palco eu fui descobrindo pouco a pouco esse poder de usar o corpo, para interpretar melhor e emocionar mais (a mim e ao público), para dançar os arranjos instrumentais e fazer as pessoas ouvi-los melhor, para ser o telão e os efeitos visuais que nós não temos, e para ser simplesmente sexy/diva/sedutora sim, porque é divertido, porque é forte, porque dá tesão e etc. A sensualidade é um território bom para explorar essa coisa que eu curto escrever, o lance dos jogos de poder e de personagens mais vulgares e defeituosos.