Mestre Zé Negão canta a memória

Percussionista e educador de Camaragibe mantém vivo o coco de senzala que aprendeu com os ancestrais, perpetuando-o na Sambada da Laia
NATHÁLIA PEREIRA
Publicado em 29/10/2017 às 6:00
Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem


Pelo caminho de chão de barro que recebe quem sobe as ladeiras do bairro João Paulo II, em Camaragibe, placas indicam que é ali que acontece a Sambada da Laia. Atualmente organizado em seis edições anuais, o encontro em celebração ao coco de senzala é conduzido por Mestre Zé Negão. Nascido há 67 anos José Manoel dos Santos, o senhor de jeito manso, mas voz austera, tem ares de entidade viva entre os seus. Desde que saiu de Goiana, na Zona da Mata, em direção às redondezas da capital, tem dedicado a vida a cantar as histórias que ouviu e viveu na labuta diária. São os cânticos carregados dos causos que ele conta com maestria que pretende por em Tumbeiro, primeiro álbum que deve chegar em 2018.

O intervalo longo entre o primeiro contato com a cultura popular e os preparativos para a estreia em estúdio fica bem mais fácil de ser compreendido quando se escuta a trajetória enfrentada por ele. Filho de Dona Maria, descendente de indígenas, e de Seu Joaquim Manoel, “descendente de família de ex-escravos”, cresceu rodeado pela rotina dos engenhos de açúcar e teve a primeira inserção na cultura popular aos dez anos, no Forró do Preá.

“Mas não era um forró, era uma sede de maracatu rural onde tinha coco de roda, ensaio de maracatu, cavalo marinho e o forró, que acontecia pra gerar renda pro maracatu se manter”, relembra. “Também tinha um terreiro de Seu Luiz do Xangô, onde eu ficava na janela admirando os percussionistas tocando uns sete atabaques grandes. Não durava, porque naquela época menino pequeno não ficava na rua muito tempo”.

Foi através da observação de espreita e da paixão pelas bandas Curica e Saboeira que aprendeu a tocar e fabricar instrumentos de percussão. Nunca teve aulas de música, mas passou muito tempo frequentando rodas de capoeira angola, quando a prática não era tão aceita. Entre cada recordação, a consciência lúcida da perseguição sofrida pelo povo negro. “Naquele tempo a gente apanhava pra aprender e era perseguido. Hoje a capoeira tá em todo canto. A gente tem a liberdade, mas não tem mata pra tirar madeira pra fazer o berimbau, não tem cabaça. Nos deram uma coisa, tiraram outra”.

COCO DE SENZALA

O coco de senzala, ele explica, é o ritmo que surgiu literalmente dos espaços apertados que o povo escravizado era limitado a frequentar. “Era o único meio de a sociedade negra se encontrar e discutir maneiras de sair daquela situação”. Tecnicamente, é tocado num ritmo mais acelerado e requer destreza do percussionista. O modo de brincar também é próprio e se adaptou aos tempos modernos. “Na roda se entra de casal em casal pra dançar e é a mulher quem tira o homem. Antes, mulher não tocava instrumento, homem não fazia segunda voz. Hoje a gente liberou, se não, a brincadeira não acontece”, conta.

A vida dura dos antepassados nas lavouras de cana da Mata Norte é análoga a que ele, como trabalhador braçal de grandes empresas, também levou. Em um dos empregos, recebia no rosto sem proteção a poeira de um produto químico que tirou completamente a visão do olho direito e deixou apenas 10% dela no esquerdo. É a marca mais gritante da vida simples, além das mãos firmes que hoje se desgastam somente com o batuque nas tumbeiras, cabaças e alfaias.

Já em Camaragibe, por volta dos anos 1980, Mestre Zé Negão passou a realizar ações educacionais em prol da comunidade, com foco especial nas crianças. Teve sempre a companhia da esposa, Mestra Fátima, bordadeira responsável por ornamentar as roupas que ele veste. É rodeado também pelos olhos atentos dos aprendizes do Coletivo Laia, que o segue nas apresentações. Em meados de 2014, o lar que já concentrava seu trabalho ganhou reforma e caráter de museu comunitário sob o nome Canto das Memórias Mestre Zé Negão. Lá estão instrumentos, livros, fotografias, quadros e tudo o mais que ajuda a costurar seus feitos.

Ele faz questão de reforçar que nunca teve ajuda de órgãos públicos para manter o trabalho de propagação de memória cultural que desenvolve. Os frutos, porém, são inegáveis. Voltou recentemente de uma temporada no Rio de Janeiro e em São Paulo, com lugares insuficientes para os muitos que queriam vê-lo tocar. A próxima viagem acontece de 18 a 26/11, novamente em São Paulo, para cumprir agenda de oficinas e shows. Antes, no dia 10, recebe mais uma atividade do Sonora Brasil, projeto do departamento nacional do Sesc que na temporada 2017 acontece com o tema Na Pisada dos Cocos. O grupo convidado será o Samba de Pareia da Mussuca, formado apenas por mulheres. O encontro é síntese do que Zé Negão e sua sabedoria típica dos Mestres propõe. Confluir para estender.

TUMBEIRO

Os relatos do sofrimento do povo negro escravizado entrelaçam todas as respostas de Mestre Zé Negão. Por isso seu álbum se chamará Tumbeiro, em referência aos navios de carga que transportavam homens e mulheres em condições desumanas até os destinos onde seriam vendidos como mercadorias. Nele, estarão 15 músicas selecionadas dentre mais de 50 que toca junto aos músicos do Laboratório de Intervenção Artística (Laia), grupo formado por Marcone, Patrícia, Ana, Ane e Mírian, aprendizes que, além da música, desenvolvem outras atividades artísticas e sociais em Camaragibe.

Para que Tumbeiro nasça, Mestre Zé Negão e sua Laia precisam arrecadar R$ 22 mil, que custearão o processo de gravação e a prensagem de mil cópias, das quais parte será distribuída gratuitamente para escolas e outros mestres populares. Algumas ações para arrecadação de fundos já foram organizadas e até março de 2018 outras mais virão, a exemplo de uma vernissage de obras feitas por artistas de dentro e fora de Pernambuco inspirados no Mestre.

Também é possível contribuir com a campanha através de depósito de qualquer quantia direto na conta da Associação Cultural Laboratório de Intervenção Artística - Laia que conta com o CNPJ 10.370.048/0001-45 (Caixa Econômica Federal, Ag: 3017, Op: 003, Conta-corrente: 1415-5). O comprovante de depósito, nome completo e e-mail devem ser enviados por mensagem para a página do Mestre Zé Negão no Facebook.

Felipe Ribeiro/JC Imagem
Mestre Zé Negão e a tumbeira, instrumento de percussão que manuseia com perfeição - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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A história de homens e mulheres escravizados é cantada em seu coco de senzala - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Os detalhes das mãos e da tumbeira tocada por ele - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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As marcas são também dos muitos dias de trabalho pesado - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Hoje as mãos descansam na música - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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A casa do educador é também sede do Canto das Memórias Mestre Zé Negão - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Lá, instrumentos, fotografias e demais objetos ajudam a contar sua história - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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O espaço funciona como um museu comunitário - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Livros também compõem o acervo - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Artistas de dentro e fora de Pernambuco homenagearam o Mestre em seus trabalhos - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Mestre Zé Negão e Sua Laia - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Ao lado da Mestra Fátima, esposa e companheira em tudo o que faz - Felipe Ribeiro/JC Imagem
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