Geraldo Vandré diz que nunca fez música de protesto

Cantor, que se apresenta em João Pessoa, não fazia shows no Brasil há 50 anos
JOSÉ TELES
Publicado em 22/03/2018 às 10:04
Cantor, que se apresenta em João Pessoa, não fazia shows no Brasil há 50 anos Foto: foto: José Teles


JOÃO PESSOA – Foi como se 1968 acontecesse novamente. Geraldo Vandré emocionou-se ao escutar a multidão cantar em coro Pra Não Dizer que Não Falei de Flores (Caminhando). Apoiou a cabeça nas mãos por alguns segundos, subitamente, levantou-se e disse para si mesmo: “Que loucura. Vou lá, com licença”. Foi até uma porta lateral. Dali se via parte da fila. Ele levantou os braços, como fez há 50 anos, diante da plateia de carbonários que o aplaudia, no Festival Internacional da Canção (FIC). Foi um agradecimento às pessoas que entoavam a canção que marcou sua vida. Um memorável instante de déjà vu. Porém em condições bem diferentes.

 Aconteceu ontem, enquanto Vandré estava concedendo uma entrevista coletiva, na Sala de Concertos Maestro José Siqueira, no Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa. O motivo dessa, inusitada, conversa do arredio artista com a imprensa devia-se à sua participação nos dois concertos, hoje e amanhã, naquela sala. Será a primeira vez que cantará em público no Brasil desde 1968, quando desafiou a ditadura militar com uma guarânia, com poucos acordes, de versos simples, diretos, extremamente subversivos para a época.

 Os que cantaram Caminhando, enfrentavam, desde cedo, uma fila gigantesca, a fim de apanhar os ingressos gratuitos para os concertos (esgotaram-se rapidamente). Houve um corinho de protesto, vaias, como as que Geraldo Vandré testemunhou no Maracanãzinho cinco décadas atrás, quando o júri da fase nacional do FIC deu o primeiro lugar a Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim.

 A confortável sala de concerto do bem equipado complexo cultural da capital paraibana comporta 500 lugares. Jornalistas questionaram ao secretário de Cultura da Paraíba, Lau Siqueira, por que o concerto não foi levado para o Teatro A Pedra do Reino, onde cabem três mil pessoas. De imediato Geraldo Vandré esclareceu: “Foi exigência minha. Eu quero o diálogo, e ele é praticamente impossível na medida em que vira multidão. Quero o contato possível com 200, 300 pessoas, 500 pessoas. No Maracanãzinho pra mim foi definitivo.  Eu costumava fazer espetáculos em lugares como esta sala. Aquela foi a primeira vez que fiz espetáculo para 25 mil pessoas, mas extrapolou, não havia mais controle”. Na verdade, a ideia inicial era de um único concerto. A grande expectativa que gerou ao ser anunciado, levou a um espetáculo extra.

 Embora não se esquive a responder nenhuma pergunta, Geraldo Vandré é escorregadio. Quando lhe perguntam se ele dará esperança de cantar no concerto, pergunta ao secretário quantos quilômetros dali até Esperança, cidade do interior paraibano. Ri, e começa a recitar os versos da letra de uma canção que escreveu para a bandeira da Paraíba. Canta um trecho. A voz está firme aos 82 anos ( completa 83 em 12 de setembro). Indagado se pretende gravar disco com músicas inéditas, afirma que sim: “Claro, mas é preciso tempo. Estas atividades daqui devem constituir posteriormente um disco. Por enquanto só isso aqui mesmo. Tenho alguns projetos para fora do Brasil. Aqui, nem em São Paulo. Geraldo Vandré é paulista. Me chamo Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, o Geraldo Vandré foi inventado em São Paulo”. O secretário Lau Siqueira diz que a gravação do espetáculo será entregue ao cantor, e deve render também DVD.

 PROVOCAÇÕES

 Algumas perguntas são provocativas. “Por que voltar depois de 50 anos parado?”, indaga um jornalista. Vandré responde com uma frase de efeito: “Parado não. A arte é uma coisa inútil, mas eu sou muito mais inútil do que qualquer artista. Consegui ser advogado num tempo sem lei”. “Por que na Paraíba?”. A resposta: “Pelo compromisso que assumi com o governo do Estado. Não tenho projetos de fazer em outros lugares”. “Ainda de esquerda?”. Resposta abertas a interpretações: “Na mão esquerda eu trago uma certeza, e na direita, sua garantia. Atenção: às vezes eu troco de mão”. Pergunta: “Quanto é o cachê de Geraldo Vandré?”. O secretário Lau Siqueira responde mineiramente: “Não tem valor que se possa dimensioná-lo dentro do mercado da música hoje”. Vandré responde mais pragmático: “Posso dizer um palavrão? Eu ainda sou a puta mais cara do Brasil”.

 Questionado se havia alguma de intenção de voltar à cena exatamente durante um período conturbado da política nacional. Vandré não se valeu de muita clareza: “Acho que o chamado subdesenvolvimento reside principalmente na falta de acesso aos níveis mais elevados da cultura. A erudição é uma coisa que não está ao alcance dos países subdesenvolvidos. Afirmo mesmo que não há nada mais subversivo para a cultura de massa subdesenvolvido do o ser nacional. Eu sou brasileiro e estou cometendo este crime de ser erudito sendo um ser subdesenvolvido”.

 O Geraldo Vandré nacionalista é o mesmo de 1968. Investe contra o rock, para ele mais forte no Brasil do que os sertanejos. “Nem nos Estados Unidos tem um festival feito o Rock in Rio”. Não poderia faltar pergunta sobre o tropicalismo, de que ele foi o crítico mais feroz: “Tropicalismo? Acho que piorou um pouco. Tem umas histórias de guitarras, de que fiz declarações contra a guitarra elétrica. Não fiz. O Quarteto Novo, que organizei e criei para fazer o meu programa na TV Record, contava com um dos maiores músicos do Brasil, (o pernambucano) Heraldo do Monte, que tocava guitarra elétrica. Eu não sou contra guitarra elétrica, o problema é a guitarra à frente de tudo”.

 Confirma ter dito, em 1968, que achou Baby, de Caetano Veloso, uma merda: “Aconteceu mesmo. Eu disse. mas já passou, já secou. Saiu na urina. Estávamos numa mesa reunidos, eu, Caetano, outros, e eu disse isso. Baby, baby. Tenho uma fotografia, meu pai tinha um carro Ford, chamado Baby”, ri alto. Um dos artistas que contribuíram para sedimentar a sigla MPB, Vandré acha que ela não tem mais vez no país: “A MPB não tem espaço. Houve um tempo em que nós tínhamos nossos programas de TV, era um sucesso grande, O Fino da Bossa, com Elis Regina, eu tinha o meu programa. Aquelas pessoas sumiram. Cadê Edu Lobo? Gilberto Gil está sempre em foco, mas ele tem um posicionamento diferente do meu sobre a música. Nós temos duas ou três canções juntos, quando fomos para São Paulo. Mas faz tempo que não o vejo, Sei muito pouco sobre ele. A MPB um dia vai voltar, o mundo dá muitas voltas, mas será completamente diferente”, vaticina.

 Da esplanada do Espaço Cultural vem o brado das pessoas que não conseguiram ingressos. Um jornalista lembra a Vandré que ele, para os jovens que estão reclamando, é um símbolo de combatividade, de protesto. Vandré rebate: “Tenho mais do que reservas, uma posição de impugnação total, a esta denominação música de protesto. A música de protesto nasceu nos Estados Unidos, a protest song. Não é uma coisa brasileira, e é bastante estratificada lá, onde Peter Seeger, Joan Baez e outros, fizeram muito bem. Acho que o protesto é próprio de quem não tem poder, não sabe o que é poder. Quem tem poder não protesta, exerce o poder. Só fiz as canções que fiz, porque tinha condições materiais, sensoriais, pensamento, para fazê-las. Nunca pretendi fazer uma canção para o povão”. Embora não tenha nem sido lançada em disco, Fabiana, a canção que fez para homenagear a Força Aérea Brasileira, veio algumas vezes à baila durante a entrevista. Geraldo Vandré rememora a origem da música:

“Lembro que, em 1985, eu apresentei a música no Memorial da América Latina, na Semana da Asa, no dia 18 de outubro. Naquele ano tive a possibilidade de preparar um coral de 300 infantes, soldados da infantaria, convocados para o serviço militar, no IV Comar. Com eles apresentamos esta canção. Lembro-me também que dias depois, no suplemento de um jornal, não vou nem citar o nome, a manchete era: Geraldo Vandré trocou de camisa cantando com os seus algozes. Veja que coisa interessante. Isto faz parte daquela história de vítima das Forças Armadas Brasileiras. Eu soube que eu tinha sido morto num quartel do Exército. Estas coisas têm muita especulação. É preciso que se diga, as Forças Armadas Brasileiras sabiam muito mais de mim do que eu mesmo. Talvez seja por isto que estou vivo”.

 CONCERTO

 O concerto, intitulado Música e Poesia da Capitania de Wanmar, consiste de um poema sinfônico composto por Vandré com a pianista paulista Beatriz Malnic (que mora em Miami) e a execução de suas composições pela Orquestra Sinfônica da Paraíba e o Coro Sinfônico do Estado (o maestro também participou da coletiva). Vandré e Beatriz conheceram-se em 1982, e a parceria aconteceu entre 1985 a 87. São seis estudos para piano, consistindo de quatro cantilenas (numeradas), um interlúdio, e as peças Mais que Sona, e Tangará.

 A peça na realidade não é inédita. Foi apresentada pela primeira vez em 1987, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, e voltou a ser tocada em público em 1996. Vandré explica a origem do concerto: “Viemos à Paraíba para o festival Aruanda, um festival de cinema. Fui convidado pelo governador para um almoço, e lá mesmo ficou acertado que retornaríamos para escrever uma obra para uma orquestra sinfônica. Tive alguns problemas de saúde e isto atrasou a minha vinda”. (Vandré está vindo para a Paraíba no inverno, escapando às baixas temperaturas paulistanas).

 Com arranjos assinados por Jorge Ribas, a Orquestra Sinfônica e o Coro Sinfônico da Paraíba, dirigida pelo maestro Luiz Carlos Durier, interpretará quatro composições de Geraldo Vandré, pela ordem de apresentação: Fabiana, Mensageira, À minha pátria (parceria com Manduka) e Pra não Dizer que Não Falei de Flores (Caminhando), ambas com participação de Alquirmides Daera e Beatriz Malnic.

 Não foi confirmado se Geraldo Vandré cantará nesta parte do espetáculo. Se o fizer, será um concerto histórico. Será a primeira vez, em meio século, que canta em público Pra não Dizer que Não Falei de Flores (Caminhando), a canção que mudou o rumo de sua vida, e que foi proscrita pelo regime militar durante onze anos.

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Geraldo Vandré Concerto em João Pessoa
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