João Gilberto fez a revolução com dissonâncias e sutilezas

Em 1963, ele já criticava as deturpações na na bossa nova
JOSÉ TELES
Publicado em 24/04/2018 às 8:35
Em 1963, ele já criticava as deturpações na na bossa nova Foto: Foto: reprodução


Alguns sinais foram detectados no LP Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, lançado em 1958, com músicas de uma dupla que se destacava na música brasileira, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. O sinal: uma batida diferente no violão que acompanhava a cantora. O nome do violonista nem constava nos créditos (também participou do coro da faixa Chega de Saudade, com Tom Jobim e Walter Santos). Canção do Amor Demais foi lançado em julho. Quatro meses depois, João Gilberto, o tal violonista, lançaria um 78 rotações, pela Odeon, com Chega de Saudade (e Bim Bom, de sua autoria, no lado B).

Revoluções não se fazem obrigatoriamente com barulho. Decupando a voz até aproximá-la do sussurro, a batida do violão aparentemente descompassada do canto, João Gilberto, com Chega de Saudade (Tom Jobim/Vinicius de Moraes) fez na interpretação o equivalente ao que Pablo Picasso, em 1907, nas artes plásticas com a tela Les Demoiselles d’Avignon. Transgrediu, de maneira irreversível, os cânones válidos até então. Surpreendentemente, aquele samba, que a maioria considerava estranho (outros nem consideravam samba), chegou rapidamente às paradas de sucesso. Primeiro em São Paulo, depois no Rio.

Era imenso o abismo entre a leveza e sofisticação de Chega de Saudade e suas “rivais” entre as cinco músicas mais tocadas, em dezembro de 1958, nas duas maiores cidades do país. As outras quatro: Balada Triste (Dalton Vogeler/Esdras Pereira da Silva), com Agostinho dos Santos e Angela Maria (empatados, ele da RGE, ela da Copacabana), Deusa do Asfalto (Adelino Moreira), com Nelson Gonçalves, Sete Notas de Amor, com o Trio Los Panchos, e Não Digo o Nome (Jair Amorim), com Anísio Silva. Primeiro lugar nas paradas não significava aceitação geral. Em época de cantor de vozeirão, como Nelson Gonçalves, o maior
vendedor de discos do país, o cantar econômico de João Gilberto virou alvo de polêmicas. Quatro anos depois, na revista Radiolândia, que ia além e fofocas de artistas e do cotidiano das emissoras, um colunista, J. Namitala, ridicularizava: “A bossa nova já começou mal, com aquelas vozes depiladas tipo João Gilberto e Carlos Lyra e outros desiludidos dos bemóis”.

A hoje surrada expressão “quebra de paradigma” não era empregada ainda 60 anos atrás, mas João Gilberto entrou em cena quebrando todos paradigmas. Um deles foi não ser contratado de nenhuma emissora de rádio ou TV e, mesmo assim, o segundo maior arrecadador da Odeon, logo depois do pernambucano Orlando Dias. Ele teria, por pouco tempo, seu próprio programa, na TV Tupi paulista, em janeiro de 1960, dirigido por Cassiano Gabus Mendes, e elogiado pela crítica. Algo impensável hoje. João Gilberto seguindo regras, roteiros, fazendo programas ao vivo. Muito menos cantando para uma plateia de “macacas de auditório”,
apelido dado pelo jornalista pernambucano Nestor de Holanda às moças que frequentavam as emissoras de rádio. Um João Gilberto nada introvertido, que batia longos papos com o conterrâneo e eloquente Jorge Amado, com quem até anunciou ter feito parcerias (se aconteceram, nunca vieram à tona).

BRIGAS NUNCA MAIS

João Gilberto no início de carreira seguia a rotina tradicional do cantor de rádio e topava até briga. Em 1961, o baiano ensaiava no Teatro Record com Elizeth Cardoso e o cantor Tito Madi falava alto. João exigiu silêncio. Tito Madi foi até ele e desfechou-lhe um soco. Houve revide. O baiano bateu em Tito Madi com o violão. Uma pancada tão forte que o derrubou no chão, com um corte profundo no couro cabeludo. Tão violenta a traulitada que o sangue respingou nos vestidos das cantoras Isaura Garcia e Leila Silva. João Gilberto escafedeu-se, e livrou o flagrante. Levado ao Hospital das Clínicas, Tito Madi optou por dizer que
tinha caído de uma escada. Os dois não falaram durante 47 anos. Em 24 de agosto de 2008, João Gilberto fez um show no Rio, e incluiu Chove lá Fora, de Tito Madi, a quem fez um convite para assisti-lo no Theatro Municipal. Tito Madi aceitou o pedido sutil, e tardio, de desculpas. Porém, convalescendo de um derrame, não pode ir.

Chega de Saudade com João Gilberto foi tida, a princípio, como uma esquisitice musical, fadada a sumir em pouco tempo. Porém, veio o primeiro LP Chega de Saudade, que ascendeu ao topo das paradas, assim como os álbuns seguintes. Discos que tocavam não apenas no rádio como nas casas noturnas frequentada pela juventude do Rio, São Paulo, e país afora. Desafinado (Tom Jobim/Newton Mendonça), apesar da complexidade harmônica, também emplacou nas paradas, assim como A Felicidade (Tom e Vinicius).

O crítico José Ramos Tinhorão comprou a briga contra a bossa nova (da qual só livrava a cara de João
Gilberto). O cronista e compositor Antônio Maria, amigo de farra de Vinicius de Moraes, aceitou com ressalvas, mesmo tendo uma composição sua (e de Luis Bonfá), Manhã de Carnaval (com Luis Bonfá), incorporada ao repertório de João Gilberto, que a gravou em 1959, num compacto duplo com quatro canções do musical Orfeu Negro (também do filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus). O maestro Guerra-Peixe, por sua vez, foi uma das primeiras vozes de peso em favor da bossa nova. Num longa entrevista à Radiolândia afirmou que a BN era a melhor coisa surgida na música brasileira.

O já aposentado Mário Reis, astro dos anos 30, que interpretava de maneira coloquial, quase falando, voltou à cena, por causa de João Gilberto. Para muita gente, foi a grande influência de João Gilberto. O cantor voltou ao cartaz e, em 1960, gravou, pela Odeon, o LP Mário Reis canta suas canções em hi-fi. Sem negar Mário Reis, João Gilberto tratou de esclarecer que não era bem assim, numa entrevista em que detalhava sua técnica:

“Apenas procuro cantar sem prejudicar o sentido poético e musical das composições. É assim como tirar os excessos, seguir o curso natural das coisas. Dar as notas de um tal jeito que não prejudique o sentido da poesia, frisar aquelas palavras que têm a força poética. Tudo isso de modo a não deixar o ouvinte desinteressar-se pelo sentido daquilo que se canta... Procuro que a voz saía idêntica à nota musical, brandamente, com naturalidade, sem esforço artificial... Procuro casar as palavras com os acordes. A voz faz também a vez do instrumento, caminhando junto com ele”.

Quatro anos depois de Chega de Saudade, João Gilberto tornava-se uma referência da música brasileira nos EUA, Europa e Japão. Ele descobriu que sua música extrapolara às fronteiras do país, quando fez uma temporada de um mês em Buenos Aires, sempre de casa cheia (uma das apresentações teve a participação de Astor Piazzolla). Em 1962, em Roma, já uma personalidade a quem os paparazzi não deixavam em paz, ele começou a se resguardar de publicidade indesejável, e criticar o mercantilismo de intérpretes de autores de uma bossa nova que considerava deturpada. Numa entrevista na Itália, reproduzida pela Radiolândia,
desabafou:

“A glória, o sucesso e a riqueza não têm interesse para mim. Vivi tantos anos na miséria e na dificuldade, que não tenho medo de voltar a enfrentar novamente dias piores. O importante é que desta vez estou fazendo algo de novo, de belo, para a música do meu país”

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