Mutantes tem trajetória contada a partir de sua música

Hoje cultuado, os Mutantes nunca foram grandes vendedores
JOSÉ TELES
Publicado em 10/09/2018 às 10:56
Hoje cultuado, os Mutantes nunca foram grandes vendedores Foto: foto: divulgação


Meio século depois do lançamento do primeiro álbum, os Mutantes ganham uma discobiografia, que disseca o grupo título a título. A autora é a jornalista e cantora, Chris Fuscaldo, que já havia incursionado por esta área em Discobiografia legionária (Editora Leya, 2016). Trajetória contada através da música, em lugar de traçar a vida atribulada dos integrantes da banda mais celebrada do rock nacional: “A história dos Mutantes já havia sido contada – e, para mim, foi muito bem contada – pelo Carlos Calado no livro A divina comédia dos Mutantes, de 1995. E eu adorei a experiência de escrever a história da Legião Urbana através das histórias de seus discos. Gosto desse viés que me permite olhar a banda de dentro do estúdio para fora, do âmago da criação para a recepção. As biografias explicam a obra a partir da vida. A discobiografia explica a vida a partir da obra”, pondera a escritora.

Chris Fuscaldo não se limitou aos detalhes de cada disco, conseguiu a façanha de conversar com os arredios fundadores do grupo, Rita Lee, e os irmãos Arnaldo e Sérgio Batista, este último o único remanescente da formação original dos Mutantes: “Entrevistar Arnaldo Baptista sempre foi problemático, pois a esposa dele criou uma barreira tão complicada que nem os próprios familiares e amigos antigos conseguem ultrapassá-la. No entanto, ao longo dos anos, fiz entrevistas com ele em momentos em que estava divulgando seus trabalhos, ou trabalhos que saíram sobre ele, como, por exemplo, o documentário Loki. Sérgio é sempre muito solícito comigo, e Rita Lee também já me deu várias entrevistas sobre Mutantes. Para este livro, voltei apenas a Sérgio, porque queria incluir os álbuns mais recentes – que só tem ele de remanescente na banda – e outros músicos, técnicos de som e personagens que não havia entrevistado ainda ao longo de minha jornada como jornalista e pesquisadora. Essa pesquisa foi iniciada em 2002”.

Entre os fatos novos que traz à tona ao revolver o trabalho do grupo, está a história de Tecnicolor, o disco gravado na França, em 1970, e que somente seria lançado vinte anos depois: “No livro do Calado, ele só sabia que a fita existia, porque ela já havia sido descoberta, pelo produtor Mayrton Bahia, nos arquivos da gravadora. No entanto, a gravadora não se interessou por lança-lo nem em 1992, nem quando Calado fez o livro, nem quando o jornalista Leonardo Rivera voltou a cutucar o presidente da multinacional para fazê-lo. Só quando Marcelo Fróes sugeriu o resgate da master, gravada em 1970, na França, é que o projeto andou. E foi lançado em 2000. Uma informação nova: existe uma master diferente, sem sintetizadores e overdubbings gravados por Arnaldo depois que o resto da banda tinha ido embora. Essa versão mais completa é que a está no mercado, A outra é ainda inédita”, conta. Mais uma nova história é um trecho da letra da Casa da Mônica, censurada, e que foi gravada com letra limada, e com o título de Beijo exagerado (no álbum Mutantes e seus cometas no país dos baurets, 1972).

A trajetória dos Mutantes é curiosa. O LP de estreia, lançado há 50 anos, não emplacou um único sucesso, vendeu muito pouco, mas lhe rendeu bastante espaço na imprensa, já que a banda, atrelada ao tropicalismo, chamou atenção desde a participação no festival da Record, em 1967, acompanhando Gilberto Gil, em Domingo no Parque. Enquadrada como mais um conjunto de iê-iê-iê, os Mutantes estavam muito à frente do que faziam os grupos contemporâneos no Brasil, tanto na música, quanto na sonoridade. A banda não mais foi uma cópia de bandas americanas ou inglesas, e sim contemporânea destas. Isto foi ratificado em 2000, quando a Tropicália finalmente recebeu o reconhecimento internacional, e os Mutantes fez apresentações nos EUA e Inglaterra (embora com Zelia Duncan nos vocais).

“No livro falo bastante dos instrumentos construídos pelo irmão mais velho de Arnaldo Sérgio, Cláudio César Dias Baptista, o chamado quarto mutante, e os efeitos que eles produziam. Uma evolução dele (depois de construir a “Guitarra de Ouro” Régulus I) foi o pedal wah-wah feito para distorcer o som da guitarra seguindo a linha Jimi Hendrix: o aparelho foi além das expectativas, e ganhou o nome de wooh-wooh, permitindo que Sérgio pudesse inventar um novo som ao gravar Dia 36, eu conto no livro. Ele também fez o theremin que Rita Lee tocava em várias músicas”, detalha Chris Fuscaldo.

RITA LEE

Rita Lee foi a primeira a gravar disco solo (Build up, em 1970), e também a primeira a ser defenestrada da banda. A gravadora atentou para o seu talento, viu que possuía luz própria. Os Mutantes até então era tido como o grupo dos irmãos Baptista, mais Rita Lee, depois também Liminha e Dinho. Mas Rita Lee cresceu em estatura, a ponto de em Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida, um disco dos Mutantes ter sido creditado a ela somente: “Aí já foi uma exigência da gravadora, por causa do contrato que Rita Lee assinou quando topou gravar o Build Up como artista solo. André Midani sempre quis que ela seguisse carreira sem carregar o nome dos Mutantes, mas ela insistiu em ficar na banda e só agarrou o desafio mesmo quando foi expulsa por Arnaldo. Mas é importante lembrar que, na época do Build Up, ela assinou esse contrato porque estava brigada com Arnaldo, e a banda tinha dado um tempo. Ele viajou e, quando voltou, ela já estava prestes a entrar em estúdio. O que nos faz realizar que as brigas deles acabaram resultando no sucesso solo dela”, explica a autora da discobiografia.

O Mutantes começa a se modificar a partir do álbum solo de Rita Lee. Acabado o namoro, Arnaldo Baptista viaja de moto para os Estados Unidos, enquanto ela foi fazer o espetáculo Nhô Look, da Rhodia: “Caindo de paraquedas e querendo a todo custo ficar bem com a amada, Arnaldo topou, meio a contragosto, ser o diretor musical do disco de estreia de Rita, o Build Up. Sérgio Dias não gostou da ideia e se recusou a participar do projeto. Entre um show e outro da turnê de lançamento de A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, que tinha chegado às lojas em março, Arnaldo e Rita entravam em estúdio para trabalhar na produção de Build Up, que seria lançado seis meses depois, e ela ensaiava o Build Up Eletronic Fashion Show”. Com a badalação em torno do álbum de Rita Lee (que emplacou um hit nacional, com José, a Joseph, do grego Georges Moustaki, com versão de Nara Leão), tanto Arnaldo quanto Sergio anunciaram que preparavam discos solo, que não foram realizados.

Chris Fuscaldo confessa-se fã da banda, até mesmo da criticada fase progressiva: “Eu gosto de todos disco da fase com Rita Lee antes de gostar dos álbuns da fase progressiva. Questão de gosto mesmo, porque reconheço que o Tudo Foi Feito Pelo Sol é primoroso. Mas eu amo aquela zona que eles faziam no estúdio com a qualidade que tinham, e o equipamento tão diferenciado das outras bandas. Ouso dizer que o Jardim elétrico é meu preferido, mas sei lá, Gosto de todos os outros”.

Discobiografia Mutantes está à venda em poucas lojas, No Rio, na Sebo Baratos), em São Paulo, na Baratos Afins, Locomotiva e Die Hard, e no site da autora (http://chrisfuscaldo.com.br/discobiografia-mutante), o preço varia de R$ 90 a R$ 100: “é um livro artesanal, feito de forma independente através do financiamento coletivo. O custo de produção ficou caro porque é um livro bonito, com papel couché, pesado, e o envio pelos Correios é caro. Mas não estou vendo ninguém hesitar em comprar por causa disso. Todos os dias tenho enviado uns dois ou três livros para todo o Brasil. Fiquei muito impressionada por ter vendido – durante a campanha – livros pro Brasil todo, de Norte a Sul”, explica Chris Fuscaldo, que lança o livro também nos Estados Unidos (está à venda em Los Angeles).

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Discobiografia mutante Chris Fuscaldo
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