Lucas dos Prazeres é um raro exemplo, na música popular brasileira atual, de um percussionista que vai além de integrante de uma banda, ou que acompanha determinado intérprete. Ele desenvolve, sozinho, ou com a Orquestra dos Prazeres, um dos mais originais projetos percussivos contemporâneos no país. O DVD Repercutir, estreia dele com a orquestra, terá um pré-lançamento hoje, às 19h30, na Passa Disco. O vídeo, gravado em novembro de 2014 no Parque Dona Lindu, foi incentivado pelo Ministério da Cultura através do Prêmio Funarte de Arte Negra. Sob a batuta de Lucas dos Prazeres, 30 pessoas participaram da gravação, boa parte da família dos Prazeres, do Morro da Conceição, na Zona Norte da capital pernambucana.
Em 2013, já reconhecido na cena musical pernambucana, Lucas dos Prazeres deu seu passo mais ousado, com um show solo, também no Parque Dona Lindu, bancado por sua produtora Dois Prazeres. Embora Pernambuco desfrute de uma cornucópia de ritmos, boa parte originária do estado, a exemplo do maracatu, apenas Naná Vasconcelos (1944/2016) se destacou no Brasil e no exterior tanto por tocar com grandes nomes da música popular como pelo consagrado trabalho solo. Lucas dos Prazeres tenta explicar esta peculiaridade:
“Se encontra um baixista ou um batera só numa banda, mas o universo da percussão é do coletivo mesmo. Isto faz com que o percussionista sempre ande em bando, tudo junto, caranguejo numa corda. Isto estimula pouco o percussionista a se jogar em cena sozinho. A se provocar nessa coisa de entender como é sua própria arte, sua própria música, como irá interagir individualmente. Até nas escolas, a prática da percussão é coletiva. Além do mais, em Pernambuco, temos essa cultura de cortejo, maracatu, afoxé, do próprio frevo, a ideia do aglomerar, isto acaba estimulando pouco o percussionista a se entender singular”.
Ele nasceu num local fértil em manifestações da cultura popular. Sua mãe, Conceição dos Prazeres, nos anos 80, participou do Balé Popular do Recife e mais tarde criaria a companhia Brincando e Dançando. Lucas foi assimilando naturalmente os sons ao redor, dos atabaques e ilus, dos terreiros de candomblé, aos batuques da Escola de Samba Galeria do Ritmo. Adolescente, participou do primeiro grupo, Banda Afro Raízes de Quilombo, do Morro da Conceição, da qual saíram dois percussionistas do Cordel do Fogo Encantado.
“Quando decidi entrar em cena solo foi um pouco pra poder me entender, antes de qualquer coisa, como músico individualmente. Qual o som que faço, que gamas de sonoridade carrego comigo, sem depender de alguém pra completar, que som é este que vou emitir sozinho. Depois que você entende isso fica mais fácil interagir com músicos de outros instrumentos. Saber dialogar, receber convidados no teu campo sonoro. Como também provocar outros percussionistas a fazerem o mesmo”, explica Lucas.
Repercutir levou quatro anos para chegar ao público, e corria o risco de ficar engavetado: “Demorou este tempo todo porque o que ganhamos com o prêmio não pagou nem um terço do projeto. Tentamos outro editais, mas não conseguimos captar nada. Então pagamos do próprio bolso. Depois que o DVD ficou pronto, tentamos patrocínio para fazer um grande lançamento mas não aconteceu. Decidimos então lançar de todo jeito. Tiramos o trabalho do arquivo. Vamos fazer, de graça, na Terça Negra, no Dia da Consciência Negra. Quem quiser estar presente não vai pagar nada pra comemorar com a gente”, diz Lucas (que será o homenageado do Homem da Meia Noite, no Carnaval 2019).
Com 13 faixas, 15 convidados, Repercutir mistura dança, percussão e canto, um trabalho conceitual, como foi O Som da Vida: “Como tem um convidado por faixa fica difícil destacar alguma. Mas , por exemplo, na primeira faixa, Joab Jó, o convidado, não pôde estar presente no dia da gravação. No show jogamos capoeira. Eu, no palco, e ele no telão. O poeta Antonio Marinho nos deu de presente um cordel, que ele mesmo foi recitar”, comenta o percussionista.
O repertório vai do folclore a medalhões da MPB: “Gravamos o DVD em novembro e será lançado em novembro, para entrar neste discurso sobre a consciência negra. A música é de domínio público, de compositores daqui feito Maria Helena do afoxé Oyá Tokolê. Quis também trazer os grandes mestres da música negra nacional, Gilberto Gil (Zumbi, A Felicidade Guerreira), Jorge Ben Jor (África Brasil Zumbi), Martinho da Vila e Rosinha de Valença (Semba dos Ancestrais) e Djavan (Luanda), quatro mestres negros da música brasileira”.
Conceitualmente, o vídeo é dividido em quatro blocos, as quatro estações do ano, começando pelo inverno: “A maneira como a percussão está diretamente ligada ao desenvolvimento natural das coisas, o universo em nossa volta. Acredito que tudo que está ao nosso redor se transforma em arte, em música. Cada estação do ano tem seu próprio som. Quando um percussionista entende isso, usa seu meio, os elementos naturais e da estação para poder rezar, festejar, fazer seus instrumentos de acordo com as frutas, as cascas, as sementes daquela estação, isso tudo vira unidade, forma única de se relacionar com a própria natureza”, esclarece Lucas dos Prazeres, que continua fazendo o espetáculo O Som da Vida, que apresenta sábado, no Sesc de Petrolina.
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