Bossa Nova chegou em Pernambuco como dança da moda

Carnaval, cachaça, e até o São João podiam ser bossa nova
JOSÉ TELES
Publicado em 12/07/2016 às 3:09
Carnaval, cachaça, e até o São João podiam ser bossa nova Foto: foto : divulgação


A segunda reportagem da série sobre a tardia Bossa Nova em Pernambuco destaca o pianista Clovis Pereira, que depois integraria o Movimento Armorial, e o violonista Normando Santos, que ensinou os franceses a tocar BN.

"Três e meia xícaras de farinha de trigo, uma xícara de leite, meia xícara de óleo de cozinha, três ovos, duas colheres de sopa de fermento em pó Royal, uma colher de sobremesa de sal, três colheres de sopa de queijo ralado, recheio que preferir, e que não deve ser muito úmido". A receita foi enviada pela leitora Rosa Bianca, e publicada no suplemento feminino do Diario de Pernambuco, em 12 de junho de 1960. Com estes ingredientes se fazia a empadinha batizada de "bossa nova".

 Em 1960, a bossa nova não era apenas um movimento bem sucedido e discutido. Tornou­-se a expressão mais empregada pelos brasileiros, talvez ainda mais do que "revolução", e "carestia". Tudo era bossa nova em Pernambuco, que vivia uma era de desenvolvimento industrial, ao mesmo tempo de confronto na Zona da Mata, com senhores de engenho benzendo­-se à menor menção aos termos reforma agrária e salário mínimo.

 A União Democrática Nacional (UDN), partido que apoiaria o golpe de 1964, tinha sua ala bossa nova (da qual fazia parte o ex-­presidente José Sarney). Clubes faziam festa de São João bossa nova, bossa­-novistas eram as prévias carnavalescas, os reclames (anúncios comerciais) em jornais e TV excediam­-se na bossa nova. Mulher batendo em marido era um fato bossa nova. Surgiu até uma marca de cachaça batizada de Bossa Nova.

 Um deputado federal sugeriu uma "bossa nova": cancelar o Carnaval de 1960, por causa da crise política e econômica que abalava o país. Um cronista local rebateu o tresloucado parlamentar, apontando para a impossibilidade do povo aceitar a passar sem a festa: "Rebelião que desconhece crise, complô de alegria, indiferente à idade e ao sexo, com adeptos em todos os subúrbios, em todas as casas. Armado de pernas ágeis, às vezes uma sobrinha, o folião recifense, esquecendo­-se de si mesmo, faz a batalha do frevo, sempre fiel à velha capoeira, imune à bossa nova".

 A citação à bossa nova em contraposição ao frevo parece hoje despropositada, mas, neste época, ainda se via esta nuance moderna do samba como mais um modismo, uma nova dança, como o twist, o rock n roll ou mesmo o baião. Ressaltando-­se que até o cerebralismo ser instaurado no rock, e as letras na MPB passarem a ter tanto ou mais importância do que a melodia, música popular era feita não apenas para se escutar, como para se dançar.

 Até meados dos anos 60, as pessoas saíam de casa para dançar, daí a profusão das boates existentes nas grandes cidades. Assim, a bossa nova começou a ser feita no Recife como mais uma opção para os muitos conjuntos da cidade, liderados por nomes como Giuseppe Mastroianni, José Menezes, Zé Gomes ou Clóvis Pereira. Este último gravou na Rozenblit, em 1962, o hoje procuradíssima LP Velhos Sucessos em Bossa Nova, que é tido como o primeiro disco instrumental de BN.

 Um time de craques foi convocado para gravar com Pereira, entre eles, Duda, Senô e Sivuca (este para dar, no violão, o toque BN de João Gilberto). Um LP produzido tendo os EUA e a Europa como alvo, daí ser um dos discos mais raros da música pernambucana.

 EXPRESSÃO ANTIGA

 Curiosamente, a expressão não causava tanta estranheza quanto as dissonâncias e a maneira coloquial da interpretação. Já em 1953, o crítico Jaime Negreiros, do Diário de Pernambuco, comentando um 78 rotações do clarinetista Severino Araújo (o limoeirense, maestro da Orquestra Tabajara) escreveu: "O samba moderno está ali em natureza bela, a bossa nova está ali em natureza bela, o talento de Severino Araújo, também".

 "Bossa", designando "jeito diferente", "talento", "novidade", foi usada por Noel Rosa, em Coisas Nossas, que lançou o samba, gravado por ele mesmo, em 1932, quando João Gilberto tinha apenas um ano de idade: “O samba, a prontidão e outras bossas/são coisas nossas/são coisas nossas”.

DOIS NA BOSSA CARIOCA

Normando Marques Santos, o recifense que foi bossa-­novista de primeira hora, começou a cantar na Rádio Jornal do Commercio (atual Rádio Jornal) no final da adolescência, escondido da família abonada. Cantor de rádio ainda não era profissão considerada decente na cidade. Normando foi contemporâneo de Claudionor Germano, Expedito Baracho, José Tobias, Raimundo Santos, Sivuca, numa época em que a emissora de F. Pessoa de Queiroz abrigava a nata da música pernambucana, e do Nordeste.

 Os pais o mandaram estudar em um dos melhores colégios do Rio, o Mallet Soares, tradicional colégio de Copacabana, onde fez amizade com outro aluno que também tocava violão, Roberto Menescal. Estava desencaminhado para sempre. Normando fez parte do núcleo original da bossa nova, dividiu apartamento com João Gilberto, tem parcerias com Ronaldo Bôscoli, e participou do célebre e polêmico concerto do Carnegie Hall, que apresentou o novo estilo de samba aos americanos.

 Normando tornou­-se um ilustre desconhecido em sua terra natal, e é citado de passagem pelos historiadores da bossa nova, porque deixou o Brasil quando a BN chegava à segunda geração. Foi convidado para fazer uma temporada em Paris, e nunca mais voltou a morar no Brasil. Em 1966, voltou a se apresentar no Recife, numa das poucas visitas que fez à cidade desde então. Normando mora em Neuilly -sur-­Seine, subúrbio requintado da capital francesa (esta série dedicará uma matéria especial a Normando Santos), casado, com filhos e netos.

 O outro pernambucano que atuou na BN desde o início foi o cronista e compositor Antônio Maria, falecido precocemente de um infarto em 1964, aos 42 anos. Atuou, esclareça­-se, criticando ferozmente tanto a BN quanto os bossa­-novistas. Dono de um dos textos mais temidos do país, Antônio Maria era igualmente um dos autores mais bem­-sucedidos, criador de doloridos sambas ­canção.

 Então, a bossa nova eclodiu e levou a dor de cotovelo a ser fichada como démodé (galicismo muito comum à época, significando algo velho, fora de moda). Maria não era de tergiversar. Ia direto ao assunto e, ao baixar a ripa em alguém, acentuava o nome da vítima, como fez muitas vezes com Tom Jobim. Numa de suas colunas, a Jornal de Antônio Maria, entregou cinco sucessos da BN que considerava serem plágios. A hoje clássica Insensatez, por exemplo, seria cópia do Prelúdio nº 4 de Chopin. Já Dindi,  cópia de Love for Sale, de Cole Porter, e Samba de Uma Nota Só, decalcada de Night and Day, também de Cole Porter (as três gravadas por nomes como Frank Sinatra).

No final da entrega, arremata: "É lamentável que todos os plágios, todas as melodias sejam assinada por Tom. Lamentável porque somos amigos. Embora não tenhamos a menor admiração um pelo outro". Ironicamente, um dos maiores sucessos internacionais da bossa nova foi Manhã de Carnaval, de Maria e Luís Bonfá, da trilha de Orfeu do Carnaval, que tem o restante das músicas assinadas por Tom Jobim, em parte com Vinicius de Moraes.

 

 No Recife, a bossa nova, a princípio considerada um modismo a mais, só engrenaria por volta de 1964, influenciada não pelo amor, o sorriso e a flor, mas pela sua segunda fase, engajada nas letras das canções e complexa nos improvisos dos grupos de samba jazz.

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