Vitor Araújo trabalha sincretismo sonoros em toques e cantos

E enfrenta o desafio de escrever para grande orquestra
JOSÉ TELES
Publicado em 22/09/2016 às 3:49
E enfrenta o desafio de escrever para grande orquestra Foto: foto: divulgação/arquivo pessoal do artista


Levaguiã Terê é um pássaro de uma lenda indígena: ninguém pode vê­lo porque ele voa por baixo do mundo, só é possível ouvir o seu canto. A ave vivia abrigada nos desvãos da memória de um guia no místico Vale do Catimbau, no Agreste, quase Sertão, pernambucano. "Não sei que nível de sincretismo há na história que o guia me contou. Não consegui achar o nome na literatura, mas, estudando os mitos do candomblé, vi uma história de Oduduá e Oxalá muito parecida com a do Levaguiã Terê. E foi então o nome com que batizei o álbum, onde trabalho musicalmente com a ideia de sincretismo entre o indígena, o africano e o europeu".

a explicação é  do pianista e compositor Vitor Araújo sobre o título do seu novo disco, viabilizado por edital do Natural Musical e lançado oficialmente hoje, e disponível para streaming no no portal do Natural Musica, e a partir do dia 19, no site www.vitoraraujo.com.br. Daí em diante, Levaguiã Terê pode ser adquirido nas plataformas digitais e nas lojas convencionais como CD duplo, com arte e projeto gráfico de Raul Luna.

Vitor Araújo começou erudito, aproximou­se da MPB, inclusive como integrante do Seu Chico, grupo cover de Chico Buarque, e, no disco A/B, de 2012, exercitou suas influências e arquitetou experiências ao lado de nomes como Yuri Queiroga, Rivotril, Macaco Bong e o trompetista Guizado. Um álbum complexo, introspectivo, mas com atitudes rocknroll. Não é o caso de Levaguiã Terê, que paira no limiar do erudito: "Eu mudo de ideia constantemente, comecei estudar composição com Mario Ficarelli, depois estudei contraponto. Passei a ter um interesse muito forte pelo método composicional erudito, mas não diria que este é um disco erudito, longe disto. Não acho que seja música para concerto", afirma. Levaguiã Terê é uma peça longa, dividida entre Toques (as seis primeiras) e Cantos (as outras seis). A primeira parte dialoga com a segunda:

"Toques e Cantos são dois aspectos da música indígena, negra e da tradição folclórica europeia, mas são sobretudo da música brasileira. São dois aspectos que não andam um sem o outro. Não existem por si só. O canto necessita do toque, e o toque precisa do canto", teoriza o pianista, que pela primeira vez escreveu um trabalho completo para orquestra. "Nunca tinha feito antes, por isto demorou tanto pra sair. Quando chegamos pra gravar, 95% das coisas estavam escritas e foi só uma questão de ensaiar".

Titulados de Toques ou Cantos, cada tema, no entanto, tem um subtítulo, nos quais estão embutidos a concepção de sincretismo do trabalho. Foram escolhidos numa pesquisa em que Vitor Araújo foi auxiliado pelo professor Silvio Moreira, especializado em filosofia estética, e outros pesquisadores de linguística ou da área de letras: "Por exemplo, Toque nr 4 ­ Talgui Naguará (que foi dedicada à mãe de Vitor) é o nome de uma índia que engravidou de uma cachoeira. Quisemos trabalhar com palavras que já estão mortas, mas têm raízes iorubá, indígena, ou europeia", explica.

MUSICA CONTEMPORÂNEA

É como se todo o trabalho de Vitor Araújo até Levaguiã Terê fosse um estágio para chegar até este disco. Desde A/B, ele amadureceu técnicas e ideias que deságuam neste álbum de música erudita contemporânea, gravado com uma sinfônica, mas com guitarras, bateria, alfaia (no Toque nr 5 ­ Ogffoxó, dedicado ao pai dele, há uma sutil levada de maracatu). Sente­se Villa­Lobos e Tom Jobim, e o conceito de sincretismo do disco, logo na faixa de abertura, Toque nr 1 ­ Rondó Fálcigo. E ainda mais no Toque nr 6, de melodia europeia, com a hipnótica massa percussiva ao fundo.

O Toque nr 2 quebra um pouco o encanto da abertura: é um tema minimalista, em que Vitor toca órgão, e Lourenço Vasconcelos vibrafone. "O disco todo trabalha muito com ostinato. Esta música foi construída em camadas, não tem tema nem melodia principal, não tem movimento harmônico. É muito a técnica de Steve Reich, a sobreposição de várias camadas de um mesmo ostinato e acima disso algumas texturas de orquestração. É a faixa que tem presença mais forte do minimalismo americano", concorda o pianista.

Levaguiã Terê é um disco envolvente e, embora seja dividido em faixas, é como se todas fossem a execução de toques em um terreiro de candomblé onde ocorre o inusitado encontro dos ilús e atabaques com uma orquestra sinfônica, temperados com sons indígenas. Uma experiência única, que precisa de repetidas audições para que se apreendam todas suas sutilezas e se penetre seus meandros sonoros enquanto o Levaguiã Terê plaina e canta em outra dimensão do planeta.

O disco e o show serão experiências à parte, embora primas entre si. Os temas estão sendo adaptado para apresentação ao vivo pela impossibilidade de reunir todos os músicos que dele participaram. "No palco vai ser outra estética totalmente diferente do disco. Só teria como repetir a sonoridade se tivesse uma orquestra à disposição, e mesmo assim as faixas variam muito de formação instrumental. E nem era minha ideia repetir a estrutura do disco no palco. Só a estrutura percussiva vai permanecer praticamente a mesma, mas não a harmonia e a melodia", diz o compositor. Difícil é saber como ele irá transpor a complexidade de timbres no disco para esse formato compacto

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