Não se trata data redonda ou efeméride que, regra geral, impulsiona celebrações. Mas os quatro anos da morte de Abelardo da Hora, completados neste domingo (23), servem para direcionar luz para a obra de um dos mais importantes e completos artistas brasileiros cujo acervo, hoje, tem destino incerto. O patrimônio de arte deixado por Abelardo - que foi escultor, desenhista, pintor e gravador - é composto por mais de 300 peças, algumas grandiosas em talento, tamanho e peso: somadas têm mais de 250 toneladas.
O artista escolheu a escultura como forma primordial de expressão. Além dela, usou diversos outros suportes para expressar sua força criadora: cerâmica, gravuras, tapeçarias e painéis em azulejos ajudam a compor a obra, construída ao longo de mais de 90 anos de vida. As esculturas, lá no início da carreira, eram feitas em pedra, cada pedaço moldado com o uso de cinzel e martelo. “Mas ele teve um problema grave de saúde por aspirar o pó das pedras”, relembra Lenora da Hora, uma de suas filhas. “O médico o proibiu terminantemente de continuar trabalhando com pedras.” No acervo, restam duas peças da fase inicial.
As esculturas seguiram dando ao artista régua e compasso de que precisava; mudou apenas o material esculpido: argila, gesso, concreto, bronze. Boa parte de suas criações está reunida num casarão com fachada amarela na Rua do Sossego, Centro do Recife, para onde a família da Hora se mudou no início dos anos 1950. Lá foram criados os sete filhos de Abelardo e Margarida, grande amor do artista, que se foi antes dele. O artista viveu por lá até a morte, em 23 de setembro de 2014, quando partiu lúcido, em dia com sua verve.
Três das filhas, as que moram no Recife, mantêm a casa arejada, bem cuidada e sob vigilância permanente. Sabem que está abrigado ali um patrimônio cujo valor vai além do artístico. “O acervo foi avaliado por um dos maiores especialistas nessa área, Renato Magalhães Gouveia, diretor do Masp. Quando se tem uma obra que se quer saber se é original ou não, se foi feita realmente pelo artista, se leva para Renato”, explica Lenora da Hora. Mas, juntos, os herdeiros optaram por não revelar o valor calculado em inventário.
Entre as peças, há uma réplica da obra Nega Fulô, de 1954 - o original faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo, o Masp. As curvas e o desenho do corpo feminino são marco das criações de Abelardo. Também são muitas as mulheres esculpidas e guardadas no casarão. Mas a crítica social é protagonista de sua obra. Combatente da ditadura e do regime militar, o artista afirmava ter sido preso mais de 70 vezes por suas escolhas políticas: ele foi militante do Partido Comunista Brasileiro.
A fome, as desigualdades espalhadas pelo Brasil, a itinerância em busca de sobrevivência retratada pelos retirantes estão presentes nos seus trabalhos. Mas neles sempre houve espaço para a festa. Abelardo desenhou, pintou e esculpiu as danças brasileiras, o Carnaval, as manifestações da cultura popular, o futebol.
Em 2015, o artista bancou a compra de um amplo terreno, com 1.110, m² , cuja área se junta à da sua casa do Sossego. Ali sonhava em construir o Instituto Abelardo da Hora. “Ele lutou durante 10 anos para que isso acontecesse, junto com o meu irmão Abelardo da Hora Filho. Tentou Lei Rouanet, buscou incentivo”, revela Lenora. “Morreram meu pai e meu irmão e nada aconteceu”, diz, lembrando que ele gostaria de reviver, com o instituto, o Ateliê Coletivo, movimento fundado por Abelardo. Entre os anos entre 1952 e 1957, o grupo de artistas movimentou e marcou as artes plásticas da região Nordeste, unindo nomes do porte de Gilvan Samico (1928-2013), Ionaldo (1933-2002), Wellington Virgolino (1929-1988) e Reynaldo Fonseca. O escultor também foi um dos fundadores do MCP, o Movimento de Cultura Popular, que buscou, nos anos 1960, levar educação, arte e cultura para comunidades mais pobres de Pernambuco.
“A família vem cuidando do acervo há um tempo, mas está ficando sobrecarregada. É preciso uma atitude de Estado - educação e cultura são deveres do Estado”, defende Iuri da Hora, filho do de Abelardo. “Há uma possibilidade de doação para a Paraíba porque não estamos vislumbrando nenhum apoio de Pernambuco. Se isso se concretizar, acredito ser uma perda irreparável para os pernambucanos.” Ele diz ainda que os herdeiros não fizeram qualquer venda de peças desde a morte do pai: “Não tiramos nada, não repartimos, exatamente para manter esse conjunto de obra íntegro”.
Lenora prefere não falar sobre possíveis novos donos do acervo, pois garante que não há nada definido. Mas confirma que ela e os irmãos têm recebido propostas de outros estados e até de outros países. “O sonho de meu pai era que esse acervo nunca se dissociasse, ficasse preservado, unido para as gerações futuras.E esse tem sido o nosso foco”, conta ela. “Chegamos a conversar, a mandar uma carta para o Secretário de Cultura de Pernambuco. Mas não recebemos nenhuma proposta concreta”, complementa. “Como filhos e herdeiros temos a responsabilidade de preservar esse patrimônio.”
“Quando ouvi falar que os herdeiros não sabiam para onde iria o acervo de Abelardo, achei que era importante vir até aqui para dizer: deve ficar aqui, em Pernambuco, no Recife, que foi a cidade dele. Abelardo nasceu em São Lourenço, eu sou de Ipojuca, mas nosso lugar é o Recife.” A declaração é do pintor José Cláudio, 86 anos, um dos mais talentosos artistas plásticos de Pernambuco, que fez questão de deixar sua casa em Olinda para fazer coro sobre a necessidade de preservação do acervo do escultor.
“Abelardo é fruto do Recife e eu sou fruto de Abelardo”, segue. “Então, não tem sentido, pra mim, que o acervo dele saia de Pernambuco, saia do Recife. Ele sempre quis que aqui ficasse. Não tem argumento que me convença que da necessidade de se tirar o acervo de Abelardo daqui.” José Cláudio considera Abelardo “um dos escultores brasileiros mais importantes de todas as épocas”. Resume assim a importância do artista: “Não vejo um nome para ser ombreado ao de Abelardo da Hora”.
A cidade do Recife incorporou a obra do escultor à sua paisagem. Parques, praças e pontes exibem peças do artista: na Rua da Aurora, estão passistas dançando frevo; no bairro de São José, o Monumento ao Maracatu (os personagens da côrte foram vítimas de vandalismo, recentemente); na Praça da República, bairro de Santo Antônio, o Monumento aos Heróis de 1817; no Parque 13 de Maio, dois destaques criados por Abelardo: os escorregos em concreto e uma dupla de cantadores. Em São Lourenço da Mata, local de nascimento, a última escultura grandiosa: O Artilheiro com seus cinco metros de altura e 1,5 tonelada de bronze está na Arena de Pernambuco.
Também devemos a ele muitas das obras de arte espalhadas pela cidade, até as que nem têm sua autoria: por sugestão de Abelardo da Hora, a Lei Municipal nº 7.427/61 estabeleceu que todo prédio da cidade com mais de 1000m² deveria ter escultura tridimensional.
As obras criadas por ele e já fincadas no Recife ficarão para as novas gerações. As da Rua do Sossego esperam, agora, por um destino.
Em nota, o Governo do Estado confirmou que vem tentando acertos com a família para manter aqui o acervo do artista, e que insistirá para que ele aqui permaneça. Leia a nota na íntegra:
“A Secretaria de Cultura confirma recebimento de proposta do Instituto Abelardo da Hora, assim como confirma diversos entendimentos mantidos por outras áreas afins do governo, com o mesmo propósito de identificar e equipar estruturas adequadas para a destinação do acervo deste nobre artista pernambucano.
Em nome do Governo, a Secult e Fundarpe reafirmam ser total o interesse em manter, no estado, o conjunto integral da obra de Abelardo, um dos mais expressivos acervos do modernismo brasileiro. Resolvidas questões como o fim do período eleitoral , e a devida complementação orçamentária, o Governo de Pernambuco tomará as providências necessárias, em comum acordo com o Instituto Abelardo da Hora, para a permanência deste importante acervo em nosso estado.”