Está cada vez mais comum as pessoas revelarem o desejo de ir embora do Brasil. Não é para menos. O País vive uma de suas piores crises políticas, a economia sofre os efeitos da maior recessão da história e os escândalos de corrupção minam a esperança de dias melhores. Além disso, há nossos problemas crônicos e históricos, como falta de segurança, educação e saúde precárias, transporte ruim e por aí vai. Segundo a Receita Federal, entre 2014 e 2016, foram entregues 55.402 Declarações de Saída Definitiva do País. Trata-se de um aumento de 81,6% na comparação com o período entre 2011 a 2013. Embora a busca por uma vida melhor seja compreensível, é bom que se diga que o dia a dia lá fora não é fácil. O alerta vem do professor José Pio Martins, economista e reitor da Universidade Positivo. Para ele, o brasileiro não deve incorporar a ideia do “quero morar em outro país” e, sim, a do “quero morar em outro Brasil.” A entrevista foi concedida a Angela Fernanda Belfort.
JORNAL DO COMMERCIO – O senhor vai na contramão do senso comum de uma parte da classe média que acha que a única solução é ir embora do Brasil por causa de todos os problemas do País. Por que o senhor considera a frase do consultor Marcelo Karam: “Eu não quero morar em outro País, eu quero morar em outro Brasil” tão apropriada nesse momento?
JOSÉ PIO MARTINS – O que me chamou a atenção foi uma pesquisa – que não me recordo o nome – a qual falava que boa parte dos entrevistados estava interessado em morar em outro país. E quando o corte era feito considerando apenas os jovens, o percentual interessado era maior. Aí fiquei pensando que, se entre os jovens, que são o futuro da nação e têm muito mais tempo para enfrentar os problemas do Brasil, uma porcentagem grande quer se mudar do Brasil, o fato objetivo e concreto é que a percepção dessa geração do futuro está muito ruim. Essa frase me agradou muito: “Eu não quero morar em outro País, eu quero morar em outro Brasil”. Quem pensa em morar em outro país tem uma visão bastante idealizada, positiva desses países, sobretudo dos desenvolvidos. O que eu quis mostrar é que, primeiro, a possibilidade de morar em outro país não se apresenta para todos os 207,7 milhões de brasileiros. Essa possibilidade é pra pouca gente. São poucos os países que conseguem exportar mais do que 5% ou 6% de toda a sua população. O segundo ponto que me pareceu, na verdade, é de que há uma ilusão de que o Brasil é só problema e de que os países desenvolvidos da Europa, Estados Unidos, Canadá são ótimos. Tenho uma filha que mora na Inglaterra, que já morou na Itália, na Alemanha, e agora está trabalhando em Londres. Estive lá, acompanho regularmente a situação da Inglaterra, é um belo país. Enquanto a Inglaterra, que pode ser o símbolo de toda a Europa, é um país muito bom, com muitos pontos favoráveis, tem vários problemas. Há necessidade de pensarmos no Brasil como sociedade, em tentar superar essa grande crise econômica, política e jurídica, moral. Construir um outro Brasil é uma empreitada muito mais viável do que imaginar dois a três milhões de brasileiros indo para o exterior. É preciso tirar um pouco essa ilusão, sobretudo comum na cabeça dos jovens, de que tudo que há lá fora é maravilhoso. Por mais que o Brasil momentaneamente esteja indefinido. A indefinição momentânea não é o problema. O problema é a perda da crença na possibilidade de reformar a nação, de superar essa crise ainda que leve uma década ou duas. Para um jovem de 20 anos, ele pode chegar aos 35 com um país muito melhor e muito jovem ainda.
JC – Por que o senhor não aconselha os brasileiros a serem imigrantes. Quais as dificuldades que um brasileiro enfrenta quando migra para os países da Europa?
MARTINS – Há três problemas em o brasileiro ir, sobretudo, para a Europa ou os países desenvolvidos. O primeiro é por mais que a União Europeia seja desenvolvida e que respeite as liberdades individuais, existe uma discriminação na prática e no cotidiano. Não é aquela (discriminação) ostensiva, que deixa a pessoa envergonhada. Por exemplo, no mercado de trabalho, se houver uma vaga de emprego na Inglaterra ou mesmo na Alemanha, dificilmente o imigrante terá a vaga (se a concorrência for com o nativo). O segundo ponto é que há uma diferença imensa entre, por exemplo, Londres e as cidades pequenas do interior da Inglaterra, o que vale também para a Alemanha. Lá, as cidades pequenas são muito conservadoras, centenárias, algumas milenares, e essa “discriminação” ao imigrante é muito maior. É muito mais difícil trabalhar numa cidade pequena da Inglaterra, mesmo que o imigrante seja diplomado, numa função simples comercial, como atendente de loja. O terceiro e último ponto é que lá, ao contrário do que muita gente possa pensar, não há uma legislação que proteja o trabalhador imigrante. No Brasil, a pressão dos sindicatos, da legislação trabalhista, faz as condições de trabalho como jornada, condições ambientais, acessibilidade, alguns direitos específicos trabalhistas e sociais serem muito maiores do que, por exemplo, os do interior da Inglaterra. Lá, eu vi condições de trabalho extenuantes de 12 horas em restaurantes, lojas comerciais em condições de trabalho até um pouco hostis. Não devemos ter uma ilusão de que os países desenvolvidos são o paraíso pra todo mundo, inclusive o imigrante, porque não é. E, por último, outro aspecto a considerar é que, em Londres e no interior da Inglaterra, os salários médios dos imigrantes são inferiores aos dos nativos. E não tem uma passeata ou um protesto por causa disso. Então, o resumo é: aqui no Brasil, os nossos problemas são sérios. Mas lá não é esse paraíso e não tem o glamour visto no cinema, que é uma fonte de prazer, mas também de ilusão. Você vai lá em Londres e as pessoas estão trabalhando duro para ter condições de vida, às vezes, precárias, que não são maravilhosas. Então, a lógica deve ser transformar o Brasil num lugar melhor, porque não tem paraíso fora daqui. Não dá para imaginar um milhão de pessoas imigrando...
JC – Mas o Brasil está muito complicado e longe de ser um paraíso... O que essa geração de até 35 anos, que está pensando em ir embora, pode fazer para de fato contribuir para um Brasil melhor?
MARTINS – A indignação é uma boa característica para que as pessoas não aceitem os problemas e sejam estimuladas a agir para melhorar. O Brasil tem problemas econômicos graves: a recessão, o desemprego muito alto, muita pobreza, essa crise política terrível que descambou nessa crise moral profunda. Mas por outro lado, tudo isso revelou uma série de mazelas e feridas brasileiras a serem tratadas. Por exemplo, quando o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) anunciou que 59,6 mil pessoas morreram assassinadas em 2014, isso é número de guerra, é problemático. O que estamos encontrando embaixo desse tapete chamado Brasil, a enorme sujeira, nos dá a oportunidade, num primeiro momento, de nos indignarmos. E, num segundo momento, de nos mobilizarmos, protestarmos e agirmos para consertar isso. É aquela crise de quem descobre uma doença, mudou os hábitos e chegou ao momento de enfrentar, iniciando o tratamento. Indignar-se é preciso. Depois tem uma segunda fase, mobilizar é preciso. Dos 207,7 milhões de brasileiros, a chance de imigrar é de poucos. Então é preciso aproveitar essa crise para fazer as reformas que o Brasil precisa para melhorar em uma década ou uma década e meia.
JC - Mas como isso pode ocorrer num País tão dividido e com tanta corrupção?
MARTINS – Temos um problema danado que é uma educação média muito falha. E não estou falando apenas da educação formal e das pessoas não conseguirem fazer as operações matemáticas básicas. As crenças são erradas. Essa tese de que roubar não é problema desde que o sujeito faça alguma coisa, é terrível. Primeiro, porque o sistema político se especializou em gastar o dinheiro dos outros. Quem produz é o sistema produtivo, que entrega dinheiro, em forma de impostos, para o setor público gastar em favor da população. A questão essencial é que a solução da pobreza passa pelo respeito ao produtor de riqueza. O economista Roberto Campos dizia que o respeito ao produtor da riqueza é o começo da solução da pobreza. O segundo ponto é que nenhum político possa ter o direito de ser corrupto e ineficiente. No Brasil, eles são as duas coisas. Isso não importa o partido, nem a ideologia. Primeiro, porque ele está gastando o dinheiro dos outros que deveria ser devolvido à sociedade em serviços. É uma indignação que temos que ter. Não podemos aceitar essa tese que é assim mesmo e não tem o que fazer. É feito um pneu do carro, se furar o primeiro, troca pelo segundo, se furar de novo, coloca um terceiro, mas uma hora vai achar um pneu que funcione. Político é a mesma coisa. Se conformar achando que isso é da natureza dos brasileiros, é o pior dos mundos. É acreditar que os seres humanos que fazem o Brasil não têm salvação e isso não é verdade. Nossa vida é muito curta comparada com a história. Para um País consertar suas mazelas, dura décadas. Duas décadas perdidas na corrupção, na lama, podem ser um terço da nossa vida. Isso gera uma impaciência. Há conflitos de interesse. Não há como fazer a reforma da previdência razoavelmente decente sem contrariar interesses. O Brasil é um país que não poderia pagar jamais aposentadorias de R$ 60 mil. São mudanças que têm que ser feitas.