Santa Maria da dor

Os relatos de quem presenciou a maior tragédia da história gaúcha
Wagner Sarmento
Publicado em 28/01/2013 às 7:01
Os relatos de quem presenciou a maior tragédia da história gaúcha Foto: Reprodução/Facebook


Quinze minutos valeram a vida. A estudante Priscila Vidor, 20 anos, que cursa relações públicas na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), estava na formatura de uma turma de tecnologia em alimentos no mesmo quarteirão onde fica a boate Kiss. Priscila, que conversou na tarde de domingo (27) via Facebook com o Jornal do Commercio, deixou a festa às 2h45 e se dirigiu à casa noturna. Mal sabia que o local, por volta das 2h30, havia sido palco da maior tragédia da história gaúcha e uma das maiores do Brasil.

Ao chegar, a jovem nem pôde se refazer do susto. O cenário de guerra não permitia reflexões. Entre a incredulidade e a dor, lembrou que um colega, Matheus Rafael Raschen, tinha saído mais cedo da formatura para terminar a noite na Kiss. A busca por informações em meio ao vaivém de feridos, sobreviventes, policiais, bombeiros e equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) era quase impossível.

De repente, dois amigos de Raschen conseguiram sair da boate. Ele não. A partir das 3h, começaram a quebrar as paredes da Kiss. Um exercício de desespero na luta por salvar vidas. Foi quase uma hora depois que Priscila teve a confirmação de que Raschen fora socorrido ferido e levado para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). No começo da tarde, o rapaz foi transferido para Porto Alegre e seu estado de saúde é grave.

A soma de irresponsabilidades amplifica a dor. “Um integrante da banda acendeu um sinalizador, a faísca pegou no teto, que era isolado com isopor, e o fogo se espalhou muito rápido. Por algum tempo, não sei determinar quanto, os seguranças fecharam as portas. Um deles ainda chegou a dizer que as chamas estavam controladas. Uma menina passou por debaixo das pernas dele para poder fugir”, conta Priscila. A desorientação geral fez muita gente confundir as portas dos banheiros com saídas alternativas. Outros tantos acabaram pisoteados.

O sol chegou e trouxe mais notícias ruins. Priscila soube que um amigo de turma, identificado como Emerson Cardozo, estava entre os mortos, além de uma colega do curso de jornalismo. O ex-namorado de uma amiga também morreu. Difícil encontrar, em Santa Maria, alguém que não conheça ao menos uma das vítimas. “A situação está muito triste. O que tranquiliza um pouco é saber que as forças estão direcionadas e que todos estão se organizando. A cidade está toda mobilizada”, relata ela.

SOLIDARIEDADE - A universitária Jenifer Godoy, 20, é exemplo desta arregimentação voluntária que tenta curar uma ferida que nem tão cedo vai cicatrizar. A estudante foi domingo pela manhã ao Hemocentro de Santa Maria doar sangue para ajudar a multidão de feridos. Portadora do tipo sanguíneo O negativo, mais raro, ela é mais uma no exército de anônimos que, desde a última madrugada, tenta amenizar a tristeza que se abateu sobre a cidade, o Estado, o Brasil. “Quando cheguei ao Hemocentro, parecia o fim do mundo. Estou disposta a fazer qualquer coisa para ajudar”, conta ela, cujo namorado tem família no Recife.

Jenifer também visitaria o Centro Desportivo Municipal (CDM), para onde os corpos de vítimas foram encaminhados. Há amigos dela desaparecidos. Jenifer soube que metade de uma turma de agronomia morreu.

Pelo Facebook, a comunidade universitária de Santa Maria, que abriga mais de 10 instituições de ensino superior, tenta fazer sua parte. Eles pedem doações de água mineral, álcool em gel, papel higiênico, barras de cereal e luvas descartáveis. Clamam ainda às farmácias da região por medicamentos como captopril, clonazepam, diazepam e paracetamol. Prefeitos de cidades vizinhas disponibilizaram alojamentos para familiares de vítimas e feridos.

No sétimo período de arquitetura e urbanismo no Centro Universitário Franciscano (Unifra), Jenifer também está indignada. Não admite o fato de a boate Kiss não cumprir a NBR 9077, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), sobre saídas de emergência em edifícios. “A boate também estava com a licença vencida e alguns extintores não estavam funcionando. É um absurdo saber disso”, desabafou.

Nas redes sociais, os universitários da cidade se mobilizaram e organizam, na noite desta segunda-feira (28), a Caminhada da Paz. No Facebook, onde o evento foi criado, 1.702 pessoas já haviam confirmado presença. A ideia é que todos vão vestidos de branco e segurando uma vela, com saída prevista da Praça Saldanha Marinho até o CDM, para o velório coletivo.

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