O ex-ditador líbio Muamar Kadafi, morto em 20 de outubro do ano passado em meio a protestos contra sua ditadura de 42 anos, forneceu armas em sigilo à Argentina durante a Guerra das Malvinas. Sete pilotos civis da companhia aérea Aerolíneas Argentinas fizeram voos secretos com aeronaves modificadas para buscar armamentos na Líbia. Guerreiros sem farda, assumiram os riscos e voaram com rádios e luzes desligados, para escapar dos radares britânicos no Oceano Atlântico. O Recife era uma das paradas de reabastecimento. Uma história ocultada por décadas e hoje contada por ex-combatentes e estudiosos argentinos.
Quando os militares argentinos retomaram as Malvinas, enfrentaram pouca ou nenhuma resistência. Havia apenas dois pelotões de fuzileiros navais com um total de 84 homens e uma força local de defesa de cerca de 100 pessoas. A operação de retomada do arquipélago em 2 de abril de 1982 foi festejada na Argentina. A Praça de Maio ficou lotada, buzinas davam o tom da vitória nas ruas de Buenos Aires e moradores lançavam papel picado do alto dos prédios. Os mesmos oprimidos pelos militares, em um arroubo patriótico, aplaudiram a ditadura. Fervor patriótico à parte, o regime argentino sabia que, se o Reino Unido resolvesse revidar, a superioridade militar britânica não daria chance ao país sul-americano.
Às escondidas, a alta cúpula da Força Aérea da Argentina, sediada no Edifício Cóndor, deu uma ordem para que os aviões comerciais ficassem a sua disposição. Chamados um a um, os pilotos civis Gezio Bresciani, Luis Cuniberti, Leopoldo Arias, Ramón Arce, Mario Bernard, Juan Carlos Ardalla e Jorge Prelooker, da frota de Boeing 707 da Aerolíneas, seriam os responsáveis pelo serviço. Foram invocados a cumprir as missões sem saber ao certo o que fariam. As viagens ocorreram entre 7 de abril e 9 de junho. Os dois primeiros voos foram para Israel, mas o apoio velado do país foi suspenso após intervenção dos Estados Unidos, tradicional aliado do Estado hebreu. Uma incursão à África do Sul foi abortada por falta de acordo com o traficante de armas.
A Líbia, então, ofereceu ajuda. A Argentina estava longe de ser aliada do país árabe, mas no cenário da Guerra Fria o regime de Trípoli se alinhara à União Soviética e contra os EUA e seus parceiros. Aliaram-se, então, um ditador árabe acusado de crimes contra a humanidade e um regime sul-americano suspeito de 30 mil mortes. No documento que selou o acordo, em 14 de maio de 1982, o chefe das Forças Armadas da Líbia, brigadeiro Mustafá Muhammad al-Jarrubi, classificou como “bárbara” a “odiosa agressão imperialista britânica”. Surpresos, o ditador argentino Leopoldo Galtieri ainda questionou o que Kadafi queria em troca. “Frutas”, brincou.
“Israel, por decisão do primeiro-ministro da época, Menachem Begin, ex-guerrilheiro contra a ocupação britânica da Palestina nos anos 40, decidiu apoiar a Argentina. Mas a pressão dos EUA cortou o fluxo de armas. No caso da Líbia, houve quatro voos, nos quais foram levados diversos tipos de armas, inclusive mísseis antiaéreos”, afirma por telefone o cientista político argentino Fabián Calle, professor da Faculdade de Ciências Sociais, Políticas e da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica Argentina (UCA).
De palácios luxuosos a bases militares no subsolo de desertos, os sete pilotos civis – hoje reconhecidos como veteranos de guerra – encararam de tudo. Até ganharam o Livro verde, escrito por Kadafi nos anos 1970, obra que apresentava a filosofia do ditador líbio com toques da sharia (lei islâmica).
SIGILO
Os civis embarcavam no aeroporto de Ezeiza, Buenos Aires, em voos sobre os quais nem mesmo suas famílias poderiam saber. Tinham escala no Recife e em Las Palmas, nas Ilhas Canárias, antes de chegar ao destino. Na volta, cumpriam o mesmo percurso, sempre à noite. Voavam apagados, silenciosos, davam posições falsas, desligavam rádios e radares. Estavam sempre com peso acima da média, tendo que pilotar mais baixo, o que gastava mais combustível e aumentava o risco, uma vez que a guerra também ganhava os céus. No lugar dos assentos, armas de toda sorte: só da Líbia, foram ao todo 120 mísseis, 10 morteiros, mil bombas, 50 metralhadoras, 50 mil projéteis e 9 mil minas. Na capital pernambucana, as aeronaves comerciais se resumiam a fazer reabastecimento e logo seguiam viagem.
Suspeita-se que o governo brasileiro sabia das paradas técnicas e era conivente. “É provável que o Brasil tivesse conhecimento. Sempre tratamos nossos vizinhos fazendo concessões. Além disso, o Brasil apoiava a causa argentina, embora fosse oficialmente neutro”, afirmou, em condição de reserva, um ex-funcionário do regime militar brasileiro.
O perigo maior era quando os aviões passavam por sobre a ilha britânica de Ascensão, no Atlântico Sul, onde a frota do Reino Unido estava estacionada – com embarcações e aviões que mais tarde viriam a bombardear os argentinos nas Malvinas. Nenhuma aeronave comercial, no entanto, foi derrubada.
Os armamentos adquiridos na Líbia eram, na maioria, de origem soviética. Algumas armas seguiam direto para as Malvinas, sem nenhum registro. Muitas nem chegaram a ser usadas. Os argentinos não sabiam manuseá-las, uma vez que desconheciam a tecnologia da União Soviética.
A guerra, apesar da resistência do país sul-americano, durou só 74 dias. O conflito acabou com 649 militares argentinos mortos e mais de mil feridos. Pelo lado britânico, foram 255 baixas e mais de 700 lesionados.
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