Reencontro com a História

Quarenta e três anos depois, Cristina Collier reencontra a família de Casa Amarela que a ajudou a não cair nas mãos do Dops
Ayrton Maciel
Publicado em 09/12/2012 às 14:55


Uma fuga cinematográfica. Quarenta e três anos depois de escapar do cerco do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) à sua residência, à Rua Conselheiro Nabuco, a 400 metros do Mercado de Casa Amarela, a socióloga Cristina Collier, 66, volta ao Recife para reencontrar a família de um delegado de polícia que a escondeu, em março de 1969. Por horas, a militante estudantil da Ação Popular (AP) – então com 23 anos – ficou em um quartinho de quintal. À noite, com um disfarce e em um fusquinha de um amigo da família, a prima do desaparecido político pernambucano Eduardo Collier Filho foi resgatada. “Eu sou Teresa Cristina Collier, nascida no Recife, filha de Pedro Collier, neta de Pierre Collier, engenheiro-fundador da Fábrica de Tecidos Camaragibe (que deu origem à cidade) e tenho 66 anos”, apresenta-se a coordenadora de logística da AP. Depois de quatro décadas, na França, Cristina reencontrou dona Isabel Desmoulin, 90 anos, e familiares que foram coadjuvantes e protetores da fuga da militante procurada pelo regime de 64.

A Rua da família Collier era a Conselheiro Nabuco, que faz esquina com a rua da casa da família Desmoulin, a Paula Baptista, onde ainda mora dona Isabel, a 200 metros do mercado. Fugida de São Paulo, onde estudava na USP e integrava os quadros da AP, Cristina havia retornado ao Recife em dezembro de 68, depois de 15 dias presa no II Exército, e logo após o governo do general Costa e Silva decretar o AI-5. Em março de 69, o Dops baixou na casa de seus pais. O delegado Moacir Sales e o agente (Luis) Miranda, que fazia a campana da casa, acompanhados de mais policiais tinham a missão de capturar a “subversiva” Cristina Collier.

Aterrorizada com a possibilidade de ser presa e torturada, reuniu forças e pulou o muro da casa vizinha, foi escondida pela família e esperou cerca de cinco horas para concluir a fuga. “Não havia ainda ordem de prisão. Achei uma ficha do Dops daqui onde consta uma ordem emitida no fim de março de 69. Ordem vinda de São Paulo. Só que eles foram lá em casa antes do final de março”.

Cristina conta que, depois que voltou de São Paulo, seguia a orientação dos pais de ficar quieta em casa. A ordem era nunca dizer que Cristina estava em casa. “Naquele dia (de março de 69), tocou o telefone, eu atendi e (inocentemente) respondi, dizendo que estava em casa. Do outro lado, veio a conversa: ‘Ah, eu tenho um recado para você. Vou passar aí’. Eu perguntei: ‘quem está falando?’ A pessoa respondeu: ‘Eu tenho um recado de seus amigos de São Paulo’. Eu digo: ‘e quem é você?’ Nova resposta: ‘Ah, não posso dizer não. Vou passar aí’”, reconstitui Cristina os momentos que antecederam a chegada da equipe do Dops. Ela diz que ficou com medo, foi ao quintal e contou palavra por palavra à irmã Solange. A conversa foi escutada por Gerusa, babá do filho da irmã.

“A apreensão aumentou porque eu tinha ido à venda de seu Rodrigues, ao lado, e tinha visto aquele homem apoiado no balcão, lendo o jornal que estava às avessas”, detalha. Era o mesmo homem que uma outra irmã tinha observado há vários dias de prontidão, na esquina: o Miranda.

A chegada do Dops era esperada. Veículos sem identificação, os agentes não se apresentaram. Disseram que queriam falar com Cristina. A resposta foi que não se encontrava. Entraram no jardim e passaram a pedir a identidade de minhas irmãs, meu cunhado e da babá. Chega o delegado Moacir Sales e que também pergunta onde estava Cristina. A resposta se repetiu. “E quem foi que respondeu ao telefone?”, perguntou Moacir. A babá (Gerusa), que tinha ouvido o meu relato, responde que foi ela. E diz tudo que eu tinha dito no telefone. Eles interrogaram e a menina repetiu tudo. Nesse tempo, minha irmã, Maria Adélia Collier, de 16 anos, vai ao quintal e ordena: ‘pula o >muro, vamos embora’. A ideia que me veio foi correr, pular para o quintal da vizinha e tentar chegar à Avenida Rosa e Silva”, revive Cristina.

Acolhidas pelos Desmoulin, Cristina e Adélia foram levadas para o quartinho no sobrado que ainda está de pé no quintal, com cobogós voltados para o quintal dos Collier. “Fomos muito rápidas. Não dá para imaginar a que ponto o medo nos deu força para pular. Coloquei um pé no meio da parede e cai do outro lado. Pelos cobogós, vimos as lanternas, escutamos as vozes dos policiais circulando nossa casa e o cachorro latindo. Uma coisa incrível é que o cachorro não latiu quando a gente pulou”, relembra. Depois que o Dops saiu, coube a Ângela Desmoulin, amiga de Maria Adélia, ir tranquilizar os Collier. As duas estavam a salvo.

Cinco horas depois, quase madrugada, o estudante de Direito, publicitário e amigo da família Collier, Joca Souza Leão, chega à casa dos Desmoulin para resgatar Cristina. “Saí de roupa esportiva, calça comprida, abraçada com meu namorado em um fusquinha. O Joca me escondeu; depois fui para a casa do jornalista Fred Vasconcelos. Os dois eram da revista Manchete. Eu não botava a cara na janela, não tinha contato com minha família”, narra.

Joca Souza Leão revive todos os momentos tensos daqueles dias de medo. “A casa (dos Desmoulin) fica em frente ao prédio do antigo comissariado de Casa Amarela. Cristina saiu com um disfarce, peruca, e entrou no carro. Ficou cinco dias escondida lá em casa. Um dia, o cunhado dela chegou lá e me entregou um bilhete fechado. Entreguei a ela, que leu e imediatamente tocou fogo. Pegou a peruca, agradeceu, desceu e foi embora. Só a reencontrei, anos depois, refugiada em Paris”, detalha Joca.

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