Aos 26 anos, sozinha, Cheryl Strayed caminhou por neve, deserto e floresta, por cerca de 1.770 quilômetros. Nas costas, uma mochila desproporcional à sua resistência física. Era 1995 e a trilha, chamada de Pacific Crest Trail, partia da fronteira com o México até o Canadá, acompanhando toda a Costa Pacífica norte-americana. As reflexões dessa experiência estão relatadas no livro "Livre: a Jornada de uma mulher em busca de um recomeço", que recentemente ganhou as telas do cinema. Cheryl fez o longo percurso na certeza de que encontraria a si mesma. Ao final, era mais do que a moça loira e magricela de quem todos duvidavam da capacidade.
Três anos antes da aventura empreendida por Cheryl, uma outra mulher, a psicanalista junguiana e contadora de histórias, Clarissa Pinkola Estés, lançava o seu best-seller: "Mulheres que correm com lobos". Por que lembro desse livro? Nele, a pesquisadora Ph.D se debruça sobre o que chama de arquétipo da mulher selvagem. “Ela implica delimitar territórios, encontrar nossa matilha, ocupar nosso corpo com segurança e orgulho independentemente dos dons e das limitações desse corpo, falar e agir em defesa própria, estar consciente, alerta, recorrer aos poderes da intuição e do pressentimento inatos às mulheres, adequar-se aos próprios ciclos, descobrir aquilo a que pertencemos, despertar com dignidade e manter o máximo de consciência possível”, define a psicanalista.
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Essa reportagem se dedica a histórias de mulheres que se abriram ao relacionamento com esse “instinto feminino selvagem”. São mulheres que viajam sós pelo mundo, porque assim decidiram. Que desconstroem, com seus relatos de estrada, a vulnerabilidade e a suposta fragilidade que rondam culturalmente o que há de feminino. Citando Clarissa Pinkola, mulheres que, de alguma forma, farejaram o “rastro da mulher selvagem”. Correm muito para alcançá-la, se livram dos escritórios, viram uma nova página, insistem numa ruptura.
NO RASTRO
Aos 31 anos, a educadora física de Taubaté (SP), Carol Emboava, percebeu que estava no seu “melhor momento” para expandir seu território. Projetou uma viagem solitária e de bicicleta que duraria um ano, pela América do Sul. “Assim, faria muitos quilômetros por dia, mas devagar o suficiente para conhecer e interagir com os lugares e pessoas”, conta. Com menos de 10 dias de viagem rumo a Ushuaia, Nathaly Forgaça, 21 anos, viu seu amigo voltar antes da hora. “Eu tinha duas opções: voltar ou seguir sozinha, e mesmo com medo e não me sentindo preparada, escolhi a segunda opção”, relembra. Seguiu por dois meses, com pouco dinheiro e de carona, cruzando o Sul do Brasil, Argentina, Chile e Paraguai. Inspirada pelo couchsurfing (dormir no sofá da casa de alguém) de um hóspede norte-americano que viajava sem bagagem, a carioca Aline Campbell, então com 24 anos, decidiu ir à Europa sem dinheiro e por três meses. Um ano depois, por outros quatro, percorreu mais de 10 mil quilômetros passando por sete Estados brasileiros, ao lado do seu cachorro, Saga. “Perigo existe, como em qualquer lugar. Como eu lido com eles é que pode ser o diferencial dentro de um todo: eu me permito seguir adiante. Confio muito nos meus instintos e acredito piamente no poder da atração. Colhemos o que plantamos”, filosofa.
Acostumada a viajar sozinha desde jovem (sua família morava em outro Estado), a curitibana Bruna Castro, 26, já hospedou Aline na sua casa, por meio do couchsurfing. Para ela, que já recebeu mais de cem viajantes, não existem barreiras para uma mulher viajar só. Experimentou isso por 15 dias entre Cuba e México e por sete dias em São Francisco. “Quando estamos sós damos mais oportunidades para aprofundar o contato com outras pessoas, desconhecidas. Mais do que um lugar bonito, são os encontros com as pessoas os meus melhores momentos numa viagem”, conta.
“Essa coisa de ‘ser mulher’ nunca fez muito sentido para mim. Lembro de ver meu irmão ter muito mais liberdade para brincar na rua... Quando cresci, entendi que algumas convenções são uma bobagem. Passei a fazer o que me dava vontade”, diz a mineira Larissa Gomes, 27, que está viajando pela America Latina, trabalhando pelo caminho e viajando da forma como o dinheiro permite. Todas dizem que são pouquíssimos os encontros com mulheres solitárias na estrada. Todas concordam que é preciso tomar certas precauções, mas nada além do que deve ser feito no cotidiano. “De nenhuma forma ser mulher nos limita. Essa limitação está na cabeça”, reflete Carol Emboava.
O ENCONTRO
Dada a planejamento e prazos, Carol diz que encara um outro modo de viver: mais relaxado. Bruna conta que abrir as portas da sua casa para estranhos a fez confiar mais. “Muitos me inspiraram”. Larissa completou 365 dias de viagem recentemente. “Tem uma coisa que aprendi que funciona contra machistas. Exigir o respeito. Sempre dizer abertamente que não gostou da piada, cantada”, reflete. Foi a partir de encontros na estrada que Nathaly aprendeu a pegar carona e a perder o medo de acampar sozinha. “Me tornei uma pessoa muito mais tranquila e aberta a mudanças. Aprendi a me virar muito mais, a valorizar o que tenho e a administrar melhor os sentimentos”, conta. Após a experiência de viver sem dinheiro e de carona, Aline procura não de “submeter aos medos sociais”. “Ter medo é normal, natural, mas procuro sempre enfrentá-lo. Todas as vezes que o fiz, me senti mais forte e vi que, no final das contas, não havia motivos para tê-lo”, conta.
Leituras:
Livre - A Jornada de Uma Mulher Em Busca do Recomeço
Cheryl Strayed
Editora: Objetiva
Mulheres que Correm com os Lobos
Clarissa Pinkola Estés
Editora: Rocco
Portas Abertas: Três Meses na Europa sem um Centavo no Bolso!
Aline Campbell
Lançamento: 2014