Vargas e Tiradentes não eram santos, não merecem ser ídolos, mas não podem ter contribuições negadas

Quando se tenta dar aos humanos caráter de santo, com estátuas, sem aprofundamento honesto sobre a história deles, acabamos esquecendo que os feitos precisam ser lembrados isoladamente porque contribuem para a evolução humana, mas os homens, em si, são transitórios
Igor Maciel
Publicado em 09/06/2020 às 16:45


A onda de revisionismo da História parece que vai fomentar as mais novas polêmicas ideológicas e eleitorais nesse Brasil que parece nunca ter problema suficiente e sempre há quem invente um novo.

Depois que a estátua de Churchill foi pichada e o “Sir” chamado de racista na Inglaterra, o bandeirante Borba Gato, que tem uma estátua em SP, virou alvo brasileiro de grupos na internet. Em seguida, Tiradentes, feito herói pelos militares, passou a ser criticado.

Agora, a crítica foi a Getúlio Vargas em tweet do deputado pernambucano Daniel Coelho (Cidadania).

Explicando resumidamente a situação e as contradições de cada um dos "réus históricos" do momento:

Sim, na juventude, Churchill era racista, xenófobo, considerava a raça branca superior e era contra o voto feminino. Participou de guerras na juventude em que, depois, escrevia para os jornais se gabando de quantos inimigos havia matado. Ao longo da vida ele mudou de ideia sobre algumas coisas, mas nem todas e cometeu muitos crimes contra a humanidade em nome do que acreditava. Apesar disso, não fosse por ele, Hitler teria vencido a  segunda guerra mundial e o mundo hoje, absorvido pelo nazismo, seria totalmente diferente. Para pior.

Borba Gato era bandido. Bandido mesmo, acusado de vários assassinatos. Ganhou muito dinheiro percorrendo o interior do Brasil, capturando e vendendo índios como escravos. Todos os crimes dele foram esquecidos depois, porque ele descobriu as primeiras minas de ouro do Brasil. E, apesar de tudo, não fosse por ele e por outros bandeirantes que faziam o mesmo serviço que ele, hoje o Brasil não teria as dimensões que tem, com a ampliação das fronteiras e a urbanização do interior do País.

O alferes Tiradentes possuía escravos e era conhecido como trapaceiro e corrupto. Uma de suas funções no Exército, inclusive, era capturar escravos fugitivos. E há registros de que, vez por outra, ele ficava com um desses escravos para ele e não devolvia. Apesar disso, foi de grande coragem quando resolveu participar da Inconfidência Mineira, foi o único dos revoltosos que assumiu seus ideais iluministas e foi morto por acreditar na República.

Getúlio Vargas era um ditador. Um caudilho populista que misturava o público e o privado sob sua própria ordem e desejo. Chegou, em determinado momento, a controlar a entrada de estrangeiros no Brasil para tentar promover um “branqueamento" da população (negros, japoneses e ciganos tinham visto dificultado). Era conhecido como o "melhor amigos dos amigos e o pior inimigo dos inimigos”. Não por acaso, essa é a definição que se dá aos mafiosos. Sim, ele tinha inclinações fascistas. Apesar disso, não fosse por ele no primeiro período de governo, o Brasil teria quebrado.

É que Vargas era o presidente quando a crise de 1929 entregou o mundo ao caos. As políticas de Vargas, a partir de 1930 quando assumiu, garantiram uma passagem segura ao Brasil pelo vale das sombras econômico usando de um desenvolvimentismo e industrialização que fizeram o País crescer economicamente nos anos seguintes.

A manutenção dessas medidas depois, algumas até hoje, é que foi um erro grave. Mas, ali, ele foi importante.

Podemos prolongar essa lista.

Dom Pedro I. Defendia o fim da escravidão, mas tinha escravos. Defendia monarquia constitucional, mas costumava agir como absolutista para atender interesses privados.

Albert Einstein. Um dos cientistas mais importantes da história tinha relatos, em seus diários, com teor xenófobo, principalmente contra asiáticos. Apesar disso, acusava os EUA de ser um País racista com os negros. Também há relatos de misoginia relacionados a Einstein.

Seres humanos são contraditórios por natureza. Em posições de poder ou em posições de destaque social, essas contradições são ainda mais comuns, porque a vida pública se confunde com a vida privada e quase nunca as duas esferas são bem conciliadas. Por isso, qualquer discussão ideológica baseada no caráter do ídolo adversário vai sempre resultar em nada.

É perigoso idolatrar qualquer pessoa. Os símbolos são importantes, é verdade, mas quando se tenta dar aos humanos um caráter de santo, com estátuas e monumentos, sem que haja um aprofundamento honesto sobre a história deles, acabamos esquecendo algo importante: os feitos precisam ser lembrados isoladamente porque contribuem para a evolução humana, mas os homens, em si, são transitórios e secundários.

Agora, tentar usar esse tipo de polêmica para lastrear briga política ideológica, sinceramente, é coisa de País que está com todos os seus problemas resolvidos.

E nenhum país nesse planeta está.

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