A persistente inflamação da política brasileira da qual esquerda e direita tentam se aproveitar

A "ideologização de tudo" é uma inflamação crônica que precisa ser combatida
Igor Maciel
Publicado em 02/02/2023 às 14:53
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) Foto: EVARISTO SA / AFP


É verdade que o deputado Arthur Lira (PP), ao ser reeleito presidente da Câmara, referiu-se à necessidade de desinflamar o Brasil no sentido de reduzir o potencial de combustão entre as instituições e o movimento que contesta a legitimidade da democracia.

Mas o sentido de inflamar é mais amplo e, talvez, o processo fisiológico da expressão encaixe até melhor do que imaginou o chefe do centrão.

Sempre que sofre uma agressão, o organismo humano inflama para se recuperar. É interessante como a experiência nos faz acreditar que inflamação seja algo ruim, embora não seja.

A inflamação no corpo, numa área que sofre algum tipo de agressão, é o processo pelo qual o agressor é isolado, anulado e expulso, iniciando a recuperação da área afetada. A inflamação é um mecanismo que protege o corpo humano de seres invasores e, sem ela, estaríamos, por um simples arranhão, entre a vida e a morte quase sempre.

O problema da inflamação é quando ela se expande além da área agredida ou quando persiste por tempo demais. Nesses casos, o remédio vira veneno. E é por isso que existem os anti-inflamatórios.

A democracia foi agredida e, quanto a isso, não há qualquer dúvida. Foi necessário que existisse uma reação das instituições. O fluxo das decisões precisou ser ampliado, como ocorre com a corrente sanguínea no processo inflamatório, para levar mediadores químicos que vão pedir ajuda ao restante do organismo e trazer esse auxílio ao local agredido.

O estrago físico vai sendo reparado no STF, no Planalto e no Congresso, como numa reestruturação do tecido no corpo humano, ainda durante o processo inflamatório. A memória de defesa do corpo, e da democracia, vai sendo reformada em todo o processo. Mas, a inflamação precisa encerrar seu ciclo em algum momento.

O Brasil precisa descer do palanque eleitoral, os estados precisam descer do palanque eleitoral, para que o púlpito seja tomado por uma discussão muito mais urgente que é a reestruturação da economia brasileira, abalada por toda má sorte de equívocos de gestão que se enfileiram desde o primeiro governo Lula (PT), passando por Dilma (PT) e por Bolsonaro (PL), com um intervalo de sobrevivência durante o governo Temer (MDB).

Quando Arthur Lira usou o termo “desinflamar” em seu discurso, talvez não tenha ideia do quanto ele é adequado. O que acontece se a inflamação persistir?

O que ocorre se o governo Lula começar a usar isso para aparar arestas ideológicas nas relações institucionais? Sendo mais objetivo: e se a atuação dos órgãos de controle e proteção da democracia começarem a confundir agressão com oposição?

Quando as defesas do corpo atacam o próprio corpo, é quando o remédio se transforma em doença. Quando um sistema enxerga agressores por todos os lados e os ataca, derruba as próprias paredes tentando atingir seus fantasmas.

O ambiente brasileiro, hoje uma mistura de estética revanchista com uma mentalidade baseada em negação da realidade, tende a atrair esse tipo de comportamento de quem está no poder. Olhar para o oposto como inimigo é a regra.

A eleição da Câmara e a do Senado foram exemplos mais próximos disso. O “candidato de Bolsonaro” e o “candidato de Lula” foram expressões muito utilizadas nos últimos dias.

Classificar os candidatos dessa forma é uma ignorância compreensível, mas é ingênuo. Lira, é bom sempre lembrar, teve os mesmos votos da esquerda em 2022 que teve em 2020. Dois anos atrás era o “candidato de Bolsonaro”. Agora, foi o “candidato de Lula”.

Trata-se, apenas, de retórica para não admitir que a eleição para os cargos do Congresso atende aos interesses do Congresso e não do presidente A ou B. O caráter ideológico que a própria imprensa tentou dar a essa eleição interna é que preocupa, porque a imprensa não é (ou não deveria ser) ingênua.

Há uma necessidade de classificar amigos ou inimigos em tudo. O Banco Central, quando não baixa a taxa Selic, é “bolsonarista e quer atrapalhar a recuperação econômica”. A Petrobras, quando não baixava à fórceps o preço do combustível, estava “infestada de petistas que queriam atrapalhar o governo Bolsonaro”.

Duas decisões técnicas que perdiam respaldo devido à “ideologização” de tudo.

Chegou-se, próximo à campanha eleitoral, a rastrear o voto de quem cometia crimes no país. “Matou a família e se matou? Em quem ele votava?”. Sim, isso aconteceu bastante, mesmo quando os crimes nada tinham a ver com política.

A “ideologização de tudo” é uma inflamação crônica que precisa ser combatida.

Caso contrário, Lula vai cometer erros terríveis que serão tratados sempre como “reação justa”. Bolsonaro e os bolsonaristas continuarão cometendo absurdos animalescos que sempre serão vistos como “reação justa”.

De justa causa em justa causa se pode demolir um edifício, tijolo por tijolo, fazendo parecer que nada está acontecendo, até que restem só os escombros.

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