Fotos: Fotos Públicas
Esqueça aquele discurso inicial das empresas de aplicativos de transporte de passageiros privados de que iriam mudar para melhor a mobilidade das cidades, fazendo as pessoas deixarem os carros em casa e reduzindo a quantidade de veículos particulares nas ruas a partir do ‘compartilhamento’ de automóveis. Ele não tem se confirmado na prática. O que se vê, aliás, é o contrário: os serviços de transporte privado por apps estão piorando o tráfego e contribuindo para as retenções e congestionamentos nas ruas. O Brasil, como sempre, ainda não tem estudos oficiais que comprovem esse fenômeno, mas os EUA já têm. Relatório produzido pela Schaller Consulting em julho deste ano, com 4.094 moradores de sete grandes metrópoles americanas (Boston, Chicago, Los Angeles, Nova York, São Francisco, Seattle e áreas de Washington DC), não só constatou esse dano como ainda fez o alerta do perigo para o futuro. O levantamento mostrou que os serviços provocaram um aumento de 160% na quantidade de deslocamentos nas ruas dessas cidades. E também concluiu, a partir das entrevistas com os passageiros, que os apps não são um substituto para o transporte público ou a propriedade de carros. A maior parte dos proprietários de automóveis não sente necessidade de se livrar do carro e opta pelos apps quando o estacionamento é difícil ou planejam beber. Ou seja, não desistem do veículo particular nos horários de pico, quando as ruas estão mais pesadas pelo volume do tráfego.
O estudo aponta que aplicativos como Uber e Lyft – alvos da pesquisa americana – adicionaram 5,7 bilhões de novas viagens entre 2016 e 2017 nas cidades mais populosas. E que mais pessoas estão optando pelos serviços, o que demonstra o perigo do travamento futuro da mobilidade. O número de passageiros aumentou 37%, passando de 1,9 bilhão para 2,61 bilhões de pessoas entre 2016 e 2017. Juntamente com os táxis, os serviços de transporte por aplicativo têm uma projeção de crescimento de 4,74 bilhões de viagens até o final de 2018. O levantamento mostra, ainda, que o crescimento dos apps foi de 241% nos últimos seis anos, superando a projeção de passageiros em serviços de ônibus locais nos Estados Unidos, que foi de 4,66 bilhões.
LEIA MAIS
Aplicativos de transporte já realizam seis vezes mais viagens do que os táxis no Recife
É preciso estar atento - não importa se é Uber, 99 ou táxi
No estudo, o analista de transportes Bruce Shaller, que assina o material, não ignora os ganhos que a ‘nova mobilidade’ tem a oferecer às cidades, como conveniência, flexibilidade, tecnologia sob demanda e agilidade entre novos serviços e mercados inadequadamente atendidos. Mas alerta para a necessidade de que o desenvolvimento desses serviços deve ocorrer dentro de uma estrutura de políticas que aproveitem o potencial para alcançar objetivos de mobilidade, segurança, equidade e sustentabilidade. “Sem intervenção de políticas públicas, as cidades (no caso as americanas, alvo do estudo), provavelmente ficarão sobrecarregadas com mais automobilidade, mais tráfego e menos trânsito para circular), reduzindo o bem-estar social”, diz.
Para o consultor, a solução é a política pública e a regulamentação. “Os formuladores de políticas devem se concentrar em limitar os veículos de baixa ocupação, aumentar a ocupação de passageiros, alterar as operações de veículos comerciais e garantir serviços de ônibus e trens frequentes e confiáveis. As taxas de viagem, os preços de congestionamento, as faixas de ônibus e o tempo do sinal de trânsito também podem ajudar as cidades a gerenciar o congestionamento atual”, diz Schaller no relatório. No caso do Recife, a Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU) diz que só com a regulamentação dos aplicativos de transporte individual – que tramita na Câmara de Vereadores a partir de um projeto de lei do Executivo – será possível saber qual o impacto dos apps no trânsito da cidade. “Não temos dados oficiais, apenas impressões embasadas em depoimentos de passageiros, taxistas. Mas é algo empírico. Por isso, só depois da regulamentação, quando passarmos a ter acesso à relação dos motoristas que trabalham com os apps de transporte privado, é que poderemos analisar esse impacto”, explica a presidente da CTTU, Taciana Ferreira.
Por enquanto, o que se sabe dos apps é que eles estão realizando muito mais viagens do que os táxis na cidade do Recife. Dados preliminares da nova Pesquisa de Origem e Destino, realizada em 2017 e que integra o Plano de Mobilidade Urbana (PMU) da capital, apontaram o crescimento. Quando o deslocamento é para o trabalho, os apps fazem três vezes mais viagens do que os taxistas. Quando a viagem tem como objetivo a educação, os aplicativos se destacam ainda mais: realizam 6,5 vezes mais viagens do que os táxis. Os dados locais, embora ainda preliminares, refletem o sentimento das ruas. Em conversas com taxistas e motoristas do Uber e da 99 – os dois aplicativos em operação na cidade –, é comum ouvi-los relatar seus dramas. Os motoristas de táxi dizem que, antes da chegada dos apps, faziam de 15 a 20 viagens por dia e, agora, não passam de dez. Há dias, inclusive, que são apenas cinco corridas.
RESPOSTA DA UBER
A Uber se pronunciou oficialmente sobre o estudo americano e fez críticas ao levantamento. A resposta foi enviada por email pela assessoria de imprensa da empresa. Confira: Em primeiro lugar, Nova York é uma cidade singular no mundo, que enfrenta desafios de trânsito muito particulares que são fruto de anos de tentativas que resultaram em falhas e sucessos. É super complicado comparar o trânsito de lá com o de qualquer outro lugar, até por ser uma cidade em que cada motorista que trabalha transportando pessoas, seja por taxi ou aplicativo, precisa de uma autorização específica para tal. O congelamento recente de novas licenças foi uma medida extrema que ninguém sabe ainda se surtirá resultado. Agora sobre o estudo em si: concordamos totalmente com várias das políticas públicas propostas pelo estudo de Schaller, incluindo faixas exclusivas para o transporte público e iniciativas de congestion pricing em Nova York. Apoiamos fortemente esses objetivos e, como resultado, anunciamos recentemente uma campanha de US$ 1 milhão em Nova York, ao lado de planejadores de transporte de todo o país, propondo soluções abrangentes para enfrentar os congestionamentos.
No entanto, a análise de Schaller tem falhas fundamentais em diversos pontos:
É importante notar também que o estudo de Schaller é limitado pela sua dependência em dados do ano passado. No ano de 2018 ocorreu uma mudança significativa na natureza do nosso serviço. Estamos construindo a primeira plataforma verdadeiramente multimodal do mundo, levando para nossos usuários opções além dos carros. Na cidade de São Francisco, nossas bicicletas elétricas JUMP já reduziram em 15% o número de viagens de Uber nos horários de pico. Temos o prazer de trabalhar em conjunto com as cidades para levar essa opção a mais e mais usuários nos próximos meses. Reforçando o que eu disse anteriormente, o estudo de Schaller é focado no mercado norte-americano. Apenas para seu conhecimento, abaixo estão dados de pesquisas que abordam a relação entre a Uber, congestionamento e o transporte público mais próximos da realidade brasileira.
Diversas pesquisas acadêmicas e levantamentos empíricos vêm demonstrando que o serviço oferecido pela Uber não cria nem aumenta o congestionamento do trânsito nas cidades. Ao usar a tecnologia para colocar mais pessoas em menos carros, a Uber aumentou a eficiência do transporte individual e tem melhorado a mobilidade como um todo por reduzir a dependência do automóvel particular e a necessidade de vagas de estacionamento nas vias. A literatura e a análise de dados de viagens também vêm demonstrando que o serviço não compete, mas complementa e incentiva o uso do transporte público por facilitar o acesso das pessoas às linhas de ônibus ou metrô, seja para ir de casa à estação, seja para ir do último ponto até a porta de casa. Mesmo nas cidades onde a Uber já faz parte do dia a dia, como em São Paulo, os carros que realizam viagens pelo aplicativo representam uma parcela pequena do total de veículos nas ruas. Pesquisa realizada pelo Ibope em 2017 apontou que apenas 2% dos paulistanos usam "com mais frequência" o transporte individual privado, enquanto 47% usam ônibus e 22% o carro particular.
Além disso, o maior volume de viagens da Uber ocorre no período noturno e aos finais de semana, justamente quando o trânsito está menos congestionado e a oferta de transporte público é menor. Para a Uber, entretanto, o olhar em relação à mobilidade não deve se voltar apenas ao número de carros que estão nas ruas e sim no uso deles, nos ganhos de eficiência e nos benefícios da tecnologia. Diversas pesquisas acadêmicas vêm apontando indícios de que a Uber contribui para reduzir a dependência do carro particular e a necessidade de destinar solo urbano para estacionamento --em São Paulo, levantamento da USP apontou que de 25% a 30% da área construída foi voltada para deixar os carros. Enquanto os carros particulares rodam na maioria das vezes com apenas uma pessoa e ficam estacionados 95% do tempo, veículos realizando viagens pela Uber podem transportar dezenas de usuários por dia. Em São Paulo, as viagens da categoria uberPOOL já evitaram que fossem percorridos mais de 15 milhões de quilômetros pelos carros, o que gerou uma economia de 704 mil litros de combustível e evitou a emissão de 1.657 toneladas de gás carbônico.
Por acreditar que não compete, mas complementa o sistema de transporte público, a Uber anunciou no fim do ano passado uma parceria global com a UITP (União Internacional de Transporte Público) para ampliar e aprofundar o diálogo com operadores de transporte público de todo o mundo. E, em abril deste ano, fechou um acordo global com a empresa Masabi para oferecer a possibilidade de usuários comprarem bilhetes de transporte público pelo próprio aplicativo da Uber. Novamente, as pesquisas vêm apontando uma contribuição positiva dos sistemas de compartilhamento nas redes de transporte de massas, e não o contrário. Uma pesquisa realizada pelo Centro de Mobilidade Compartilhada, dos Estados Unidos, publicado em periódico da Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina, não encontrou evidências de que usuários de transporte público estejam migrando em massa para aplicativos de mobilidade como Uber. Os pesquisadores analisaram dados do sistema público de transporte e de viagens por aplicativo de cinco cidades americanas (Chicago, Washington, Los Angeles, Nashville e Seattle) entre 2010 e 2016 e concluíram não existir uma relação clara entre o nível de utilização dos apps com as mudanças de longo prazo na utilização do transporte público.
A pesquisa, a única da área realizada com dados reais de aplicativos, aponta que o uso mais intenso dos apps ocorre no período noturno e nos finais de semana, não durante os horários em que o transporte público é mais utilizado. Uma mostra de que os aplicativos podem ser uma opção a mais para as pessoas se locomoverem pelas grandes cidades é que a Uber tem tido um papel fundamental no “last mile” (viagem do último ponto de transporte público até sua residência) dos trajetos realizados pelos usuários. É o que mostram estudos feitos em Londres e Los Angeles, por exemplo.