A série Escalonamento em discussão, publicada pela Coluna Mobilidade para discutir o impacto que a mudança traria para o transporte público, chega ao fim com o alerta da saúde: é preciso combater a concentração de passageiros nos horários de pico dos ônibus, metrôs e trens no Brasil. É urgente. E o escalonamento dos horários das atividades econômicas ajudaria muito. A sociedade precisa ser convencida disso. Quem faz a defesa é o médico infectologista Jamal Suleiman, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, referência em infectologia pela OPAS/OMS. “O uso de máscaras é fundamental e a higienização dos veículos deve se tornar permanente. Mas só com o escalonamento de horários conseguiremos reduzir a lotação. É pelo bem de todos”, defende o infectologista, que também é passageiro dos ônibus e metrô de São Paulo.
CONFIRA AS OUTRAS REPORTAGENS DA SÉRIE ESCALONAMENTO EM DISCUSSÃO
JC - O transporte público urbano do Brasil, do jeito que está, com superlotação nos horários de pico em praticamente todas as cidades, é um ambiente perigoso, de risco para a contaminação pelo coronavírus?
JAMAL SULEIMAN - Sim, o transporte público é um ambiente insalubre para doenças de transmissão respiratória. É para o coronavírus agora, mas sempre foi para outros vírus. E será sempre. O sarampo, por exemplo, pode vir a ser um problema. A medida que cai a taxa de imunização da população, surgem mais. O vírus não acaba, ele está aí. Hoje, o problema é o coronavírus porque não há tratamento, não há vacina. Por isso, todo mundo fica apreensivo. Mas esse não é um problema novo. O que essa pandemia faz é desnudar o problema. Apenas. Para as doenças de transmissão respiratória qualquer situação que não tenha método de barreira (uso de máscaras) ou distanciamento social é perigoso, é risco. Ainda que você use o método de barreira, consegue diminuir o risco de transmissão. Mas se não consegue impor uma distância de 1,5 metro do outro, o risco está posto.
O uso de máscaras é fundamental e a higienização dos veículos deve se tornar permanente. Mas só com o escalonamento de horários conseguiremos reduzir a lotação. É pelo bem de todos",Jamal Suleiman, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas
JC - Então, o escalonamento das atividades econômicas da sociedade seria uma solução para ajudar o transporte público a diminuir essa proximidade entre as pessoas?
JAMAL SULEIMAN - Sim, o escalonamento é uma estratégia sim. Como a gente não vive na Suíça, porque lá é mais fácil, o transporte público é tranquilo, pontual, não é cheio, é uma alternativa sim. O ideal era mudar o serviço, transformá-lo em algo mais decente. Eu não vejo outra estratégia para diminuir o pico nos ônibus e metrôs a não ser segmentar a entrada do trabalhador. Porque não há muito o que fazer. São poucas horas de concentração. O escalonamento seria o mais efetivo neste momento sim.
JC - O escalonamento das atividades seria uma medida para ser adotada, então, em primeiro lugar?
JAMAL SULEIMAN - Sim, porque você consegue fazer rapidamente, com a participação social. Expandir a oferta de transporte é uma situação difícil, não se consegue fazer imediatamente. Tem um custo operacional alto. A própria população paga. Já com o escalonamento é diferente. Você tem várias opções para adotá-lo. Pode fazer por zonas, por atividades. Há várias estratégias. Cidades que têm a oferta de trabalho mais próximas das moradias permitem esse modelo por zona. Já as outras precisam adotar o modelo de atividades. No Brasil, acredito que só poderíamos usar o escalonamento por atividades mesmo porque a gente tem o modelo de subúrbios americanos que não deram certo. Por isso os longos deslocamentos pela população e, consequentemente, os grandes picos no transporte.
JC - O que dizer à sociedade para reduzir a rejeição à proposta de escalonamento? Muitos setores econômicos já deixaram claro que são contra a mudança e que é preciso encontrar outras soluções para reduzir a concentração do pico no transporte público?
JAMAL SULEIMAN - É preciso convencer a sociedade de que, quando o poder público pensa nesse tipo de estratégia, não está pensando no político, no prefeito. Está pensando no cidadão, na proteção dele. Porque, se aquele cidadão não adoecer é melhor para todo mundo. Inclusive para ele. É preciso lembrar que não é uma estratégia que vai durar a vida toda. Imaginamos que vamos conseguir sair dessa situação de uma forma rápida. Aliás, para a ciência, até que muito rápido. Mas nessa fase de transitoriedade, sem a cooperação da sociedade, será em vão.
JC - O senhor não está sendo muito otimista nessa capacidade de convencimento da sociedade, que em sua maioria pensa individualmente e, não, no coletivo, aqui representado pelo transporte público?
JAMAL SULEIMAN - No primeiro momento, por exemplo, eu fui contra o uso de máscaras porque, históricamente, a máscara aumenta o risco de contaminação para pessoas despreparadas para manuseá-las. Mas a variável imprensa não estava no meu pacote. E a imprensa teve um papel fundamental em educar o manuseio. Jamais podia imaginar que as pessoas fossem ouvir e entender como usá-las da forma correta. Ou seja, eu acho que a gente pode mudar a sociedade, ensinar. É possível. Ainda que tenha uma resistência, como havia com a máscara, a gente deve insistir para mudar essa resistência. Mostrar que é importante o escalonamento.
JC - Não é utopia achar que vamos conseguir colocar um passageiro a 1,5 metro do outro?
O senhor anda de ônibus, de metrô? Faz ideia de que como funcionam esses sistemas no pico?
JAMAL SULEIMAN - Acho que é uma utopia, mas é uma utopia possível. Não é impossível. Acredito que é uma questão de exercício. O processo com as máscaras me fez ver muito claramente que dá para mudar. Que é possível educar, conscientizar. Veja, eu sou usuário do transporte público em São Paulo. Mas não entro num ônibus ou metrô se ele estiver muito cheio. Posso me dar o luxo de aguardar o próximo ônibus, o próximo metrô. A lotação do transporte não é um processo que a gente não consiga vencer. É possível. Se eu amplio o horário de pico em duas horas, por exemplo, consigo minimizar o impacto da concentração. Por isso não vejo como uma utopia inalcançável.
JC - O Plano de Mobilidade Urbana do Recife, que vem sendo elaborado por gestões municipais há dez anos e não é finalizado, recomenda o escalonamento de horários. Mas o tema é sempre polêmico para os gestores públicos. Falta coragem para criar o decreto e fazer ele ser cumprido. Ainda mais agora, que o setor de transporte tem defendido um modelo permanente. O senhor defende que isso precisa ser vencido?
JAMAL SULEIMAN - Sim, mas é uma negociação. Isso precisa ser pactuado com a sociedade. A construção civil reclamou, outros setores vão reclamar porque vai apertar para cada um de nós. Porque estamos acostumados com um certo desenho. Mas aí é que entra o papel do município. Sabemos das dificuldades, ainda mais em ano de eleição. Por isso, é preciso negociar. O problema, aliás, não está em negociar. Agora, existem decisões de saúde pública que não se pautam pela questão política. Os órgãos técnicos federais, estaduais e municipais, por exemplo, têm estratégias e tomam decisões técnicas, não políticas. É o caso de uma agência de vigilância sanitária ou de transporte. Essas instituições têm órgãos colegiados que podem, dentro de uma estratégia, levantar esse tipo de discussão. Mas é algo que precisa ser discutido, negociado, não imposto de cima para baixo. Tem que conversar e convencer. Por isso, digo que é uma utopia realizável.
JC - E a higienização dos ônibus, metrôs e trens? O uso de equipamentos de biossegurança? Ajudam a evitar a contágio por superfície contaminada, por exemplo?
JAMAL SULEIMAN - Olha, todas essas ações de higienização são fundamentais e devem ser padrão permanente. Aliás, é uma pena que elas só tenham sido descobertas agora pelo setor de transporte. É fundamental que continuem. Agora, há muitas discussões sobre o contágio do vírus através de superfícies contaminadas. As análises sempre apontam como grande risco a contaminação respiratória e por isso evidenciam a proteção de barreira como a mais importante para o coronavírus. Mas no cenário do transporte público a desinfecção é sempre importante, até porque evita a contaminação por parasitas. A infecção a partir do contato da mão com superfícies contaminadas é tecnicamente possível, mas a análise dos casos aponta que a transmissão tem sido fundamentalmente respiratória. O que é melhor para os ônibus e metrôs, por exemplo.
É preciso convencer a sociedade de que, quando o poder público pensa nesse tipo de estratégia, não está pensando no político, no prefeito. Está pensando no cidadão, na proteção dele. Porque, se aquele cidadão não adoecer é melhor para todo mundo. Inclusive para ele",Jamal Suleiman, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas
JC - E a questão da ventilação nos ônibus? É importante?
JAMAL SULEIMAN - Sim, sim. A ventilação também é importante. No caso dos ônibus, tentar circular com a janela aberta. O ideal era que os metrôs e ônibus refrigerados utilizassem o mesmo método de filtragem do ar dos aviões. É a substituição de filtros, trocando o ar a cada três minutos, o que reduz as chances de alguém se contaminar. Ajudaria muito. Mas é caro. Se bem que eu vi umas fotos de voos nacionais que são de tirar o sono, um verdadeiro pesadelo. Muita exposição ao risco, mesmo com o sistema mais eficiente. As pessoas falam muito do perigo no transporte público e esquecem do transporte aéreo.
Citação
O uso de máscaras é fundamental e a higienização dos veículos deve se tornar permanente. Mas só com o escalonamento de horários conseguiremos reduzir a lotação. É pelo bem de todos"
Jamal Suleiman, do Instituto de Infectologia Emílio RibasCitação
É preciso convencer a sociedade de que, quando o poder público pensa nesse tipo de estratégia, não está pensando no político, no prefeito. Está pensando no cidadão, na proteção dele. Po
Jamal Suleiman, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas
Comentários