Estamos criando um monstro. Um mal para a mobilidade urbana e, principalmente, para a saúde pública brasileira. A explosão em muitas cidades do transporte remunerado de passageiros com motocicletas, como os serviços Uber e 99 Moto - com destaque especial às regiões mais pobres do País - é um fenômeno que está acontecendo sem nenhuma reação do poder público ou da sociedade.
Ao contrário. A população está aderindo e utilizando o serviço com muita, muita frequência. Iniciado em 2020, na capital sergipana de Aracaju, o Uber Moto explodiu no País e já está sendo oferecido em pelo menos 170 cidades brasilerias.
O 99 Moto seguiu a mesma linha e já opera em mais de 3 mil municípios. As plataformas não falam em usuários e quando os citam, associam aos passageiros do carro, o que impede o acompanhamento da evolução do serviço.
Mas andar com um olhar mais atento nas ruas de cidades como o Recife, por exemplo, é perceber facilmente a explosão do uso do serviço. Principalmente pelos passageiros, muitas e muitas vezes soltos na garupa da moto, com capacetes inadequados ou desafevelados, dedos do pé expostos e até manuseando celulares.
Sob a ótica da mobilidade urbana, o crescimento do Uber e 99 Moto é uma bomba que vai explodir em breve - em meses, talvez até anos - e que vai ser paga pela sociedade brasileira. Seja com o aumento dos custos da saúde pública para atender as vítimas dos sinistros de trânsito ou com o incremento de aposentadorias por invalidez permanente, por exemplo.
O entendimento de quem vivencia e estuda as sequelas do trânsito brasileiro é unânime em defender que a motocicleta não é o tipo de veículo indicado para o transporte remunerado de passageiros, exatamente pela fragilidade que lhe é peculiar e que exige preparação e cuidados específicos para conduzi-la.
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“O primeiro ponto dessa discussão é que a motocicleta não é o veículo mais adequado para transporte de passageiros. É preciso, por exemplo, usar o capacete da forma correta e devidamente fixado na cabeça, como determina o CTB (Código de Trânsito Brasileiro). É um veículo de difícil condução, que exige preparação para conduzi-lo, principalmente se levar um passageiro na garupa”, afirma Renato Campestrini, advogado especialista em mobilidade urbana, legislação e segurança de trânsito.
O passageiro do Uber e 99 Moto, inclusive, é o que mais tem preocupado os especialistas e socorristas do trânsito. Eles são vistos como o lado mais frágil exatamente porque a grande maioria não tem o hábito de andar na garupa de uma motocicleta. “A maioria desses passageiros não são pessoas acostumadas com a moto e eles podem provocar uma queda por não saber andar na garupa. Basta a pessoa se mexer de um jeito errado no banco traseiro ou ser mais pesada que o condutor, por exemplo, que pode derrubar a motocicleta”, alerta Campestrini.
Infelizmente, a motocicleta segue sendo a vilã do trânsito brasileiro e, por isso, tanta preocupação em relação à explosão dos serviços de Uber e 99 Moto. O Brasil ainda não faz um recorte estatístico que associe diretamente o avanço do transporte remunerado de passageiros por motos com os sinistros envolvendo motoqueiros e passageiros.
Essa associação é subjetiva. Pelo menos por enquanto. Mas os dados nacionais e regionais - no caso, de Pernambuco - indicam que os ocupantes das motos continuam sendo as principais e mais custosas vítimas do trânsito.
Os dados mais atualizados do DataSUS do Ministério da Saúde, fechados em maio de 2023, apontam que o trânsito no Brasil matou 33.813 em 2021. Esse número representa um crescimento de 3,5% em relação a 2020, quando o País teve 32.716 mortes. E, desse total, 44% das vítimas são ocupantes de motocicletas.
Os estudos também não diferenciam - pelo menos por enquanto - se os ocupantes são condutores ou passageiros. Os mesmos dados do DataSUS ainda apontam que as motos respondem por 5.7 mortes para cada 100 mil habitantes do País. Em alguns estados, como o Piauí - onde o serviço de Uber e 99 Moto é oferecido - foram registradas 18 mortes por cada grupo de 100 mil habitantes. Já em Pernambuco, foram 6.7 mortes.
Outro dado preocupante e que indica a associação direta entre a explosão do serviço de Uber e 99 Moto e os sinistros de trânsito envolvendo condutores e passageiros são do SAMU Metropolitano Recife.
Os números do serviço de atendimento móvel de urgência apontam que, nos quatro primeiros meses de 2023, já foram registrados quase metade das ocorrências de todo o ano de 2022. E quando o recorte é feito mensalmente, esse crescimento fica ainda mais evidente.
Enquanto em 2022 foram 3.900 atendimentos a vítimas de motos, nos quatro primeiros meses de 2023 foram 1.480. E sob o aspecto do transporte de passageiros, os números do SAMU também deixam evidente o quanto a motocicleta é menos segura do que o automóvel.
Foram 112 atendimentos a vítimas de sinistros de trânsito com carros entre janeiro e abril de 2023 e 353 em todo o ano de 2022.
“Sabemos que houve um incremento da motocicleta nas ruas e, mesmo ainda sendo leviano associar o crescimento dos sinistros com motoqueiros aos aplicativos, não podemos desconsiderar os números do SAMU apontando que, até abril deste ano, chegamos a quase metade de todo o ano de 2022. De fato, acende um alerta”, afirma Leonardo Gomes, coordenador geral do SAMU Metropolitano Recife.
O médico, inclusive, também destaca o perigo que o transporte por motos representa para o passageiro. “O passageiro é a parte mais frágil de todo esse processo. Muitas vezes, o carona está andando pela primeira vez na garupa de uma moto e não sabe como se portar”, alerta.
“Quem tem treinamentos para conduzir motocicletas, por exemplo, sabe que, em algumas situações, quando o sinistro de trânsito é inevitável, existem técnicas para que o condutor se proteja e minimize o dano. Mas o passageiro não. Por isso é tão perigoso o transporte remunerado de pessoas em motos”, alerta.
Diante dos dados, o coordenador do SAMU Metropolitano Recife avisou que irá alterar a identificação das vítimas de motos, diferenciando condutores de passageiros para ajudar nas futuras estatísticas. “Vamos melhorar nossos registros. Se começarmos a identificar que as amputações e os traumatismos cranianos
estão mais nos garupas, teremos que promover mudanças na política de saúde e segurança viária”, analisa.
De acordo com o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde de 2023, há um custo de 50 bilhões por ano com sinistros de trânsito no Brasil. Esse custo envolve desde o resgate na rua, o tratamento hospitalar, o custo com previdência privada e seguros por sinistros.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) já apontou um valor ainda maior: o custo das mutilações no trânsito para a saúde pública e a previdência social seria de R$ 1,5 trilhão por ano.
Em Pernambuco, seria de R$ 6 bilhões e metade desse valor gasto somente com motociclistas.
Também em Pernambuco, segundo dados do Comitê Estadual de Prevenção aos Acidentes de Motos (Cepam) da Secretaria Estadual de Saúde (SES), em 2022 foram registrados 26.967 atendimentos de vítimas de sinistros de trânsito com motos, que provocaram 117 mortes, 76 amputações traumáticas e 117 lesões de órgãos internos.
No Estado, mais de 74% dos sinistros de trânsito envolvem motoqueiros. Foram 36.680 registros, dos quais 28.257 envolveram motocicletas. Entre janeiro e fevereiro de 2023, já são 4.861 registros.
“A vulnerabilidade da motocicleta é maior. O carro absorve o impacto de uma colisão de trânsito, por exemplo, enquanto que na moto esse impacto é absorvido pelos corpos do condutor e do passageiro. Os corpos estão expostos”, reforça Jackeline Diniz, coordenadora do Cepam.