Curada após se infectar pelo novo coronavírus, advogada diz que "isolamento é um gesto de amor"

Em entrevista à jornalista Cinthya Leite, titular desta coluna, a advogada recifense Renata Berenguer conta como passou por todo o tratamento para vencer uma doença pouco conhecida, que desafia a ciência e que precisa ser combatida com o isolamento social
Cinthya Leite
Publicado em 29/03/2020 às 19:47
Recuperada da infecção pelo novo coronavírus, a advogada recifense Renata Berenguer, 30 anos, é entrevistada pela jornalista Cinthya Leite Foto: REPRODUÇÃO FACEBOOK


A advogada recifense Renata Berenguer, 30 anos, foi a 12ª paciente, em Pernambuco, com diagnóstico confirmado de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. Em entrevista à jornalista Cinthya Leite, titular desta coluna, ela fala dos primeiros sintomas, dos medos que vieram logo após as primeiras suspeitas da infecção, do comportamento altruísta decorrente do adoecimento, do sentimento positivo que teve com o fato de estar recuperada e da necessidade de toda a sociedade respeitar agora o isolamento social. "Isolamento é um gesto de amor, um gesto que todos nós, pobres ou ricos, somos capazes de fazer", relata Renata, que é uma das 11 pacientes já curadas da doença no Estado. 

JC – Como você começou a sentir os primeiros sintomas de que não estava bem de saúde?

RENATA BERENGUER - Faz quase um mês que tudo começou. No começo deste mês de março, viajei a trabalho para um congresso em outro Estado, onde tive contato com uma pessoa que havia acabado de retornar de Portugal. Ela estava completamente assintomática: não tossia nem espirrava. Eu passei dois dias bem próxima dela, manhã, tarde e noite. No dia seguinte, amanheci com dor no corpo. Naquele momento, o coronavírus era algo ainda bastante distante. Então, pensei que a dor no corpo poderia ser decorrente de uma virose. Havia passado o Carnaval no Rio e, depois da festa, a gente sempre tem uma dorzinha de garganta, uma indisposição... Imaginei logo que fosse uma virose pós-carnaval. Isso aconteceu, mais ou menos, entre 4 e 5 de março, quando fiquei próxima àquela pessoa que havia acabado de chegar da Europa. No dia 6, feriado no Recife, viajei com um grupo de amigos para Fernando de Noronha. Ao chegar lá, estava sonolenta e com dor no corpo. Durante o dia, fiquei dormindo, tirando um cochilo na praia. Espirrava e tossia esporadicamente, e o estado febril aparecia no fim do dia. Sentia a pálpebra e o corpo mais quentes. Mas nada de febre mesmo. A garganta estava meio que arranhando, mas também nada preocupante. Voltei de Noronha no dia 9, passei pouco tempo no Recife e, naquela madrugada, às 3h da manhã, já segui viagem para Blumenau a trabalho. Passei por São Paulo, Navegantes e, de lá, peguei um transfer para Blumenau, onde comecei a sentir dor de cabeça persistente, diferente, na região dos olhos. Sentia a cabeça pesada, e nada passava, nenhum remédio fazia efeito. Além disso, a dor no corpo persistia. É uma dor grande, fora da normalidade de uma virose.

JC – Retornou de Blumenau ainda indisposta? Como foi a viagem?

RENATA BERENGUER - Quando voltei de Blumenau, fiz escala em São Paulo, no Aeroporto de Guarulhos. E estava um caos, muita gente usando máscara já, só se falava sobre coronavírus. Quando eu tento cochilar no avião, busco respirar fundo, mas o ar não vem. Aí, de olhos fechados, pensei: “Que coisa estranha”. Imaginei que fosse um princípio de sinusite. No dia seguinte, a dor no corpo permanecia, e achei que estava gripando. Abri um grupo no WhatsApp e li uma mensagem daquela pessoa, que havia viajado para a Europa, dizendo que apresentou diarreia e dor no corpo. Ela falou que, por cautela, faria o teste para saber se estava infectada pelo novo coronavírus. Li a mensagem, de uma pessoa muito consciente, e fui pesquisar sobre isso. Percebi que os sintomas da doença eram bem semelhantes ao que eu estava sentindo, destacando principalmente a falta de ar. Então, por cautela, decidi fazer também o exame. Naquele momento, nem pensei só em mim, mas também nas pessoas que estão ao meu lado. Eu circulo demais, trabalho em vários lugares diferentes, viajo demais. Por mais que os sintomas pareciam ser leves, naquele momento, eu tinha que ter cautela. Quero destacar que a pessoa que me passou a doença era assintomática (quando houve o contato próximo), ela não sabia que estava com coronavírus, e eu também não sabia. Só soube que ela havia retornado da Europa numa sexta-feira, 13 de março, quando logo procurei um hospital. 

JC – Onde fez o teste? E como foi o atendimento?

RENATA BERENGUER – Fui a um hospital privado e, ao chegar à recepção, disse que gostaria de investigar o coronavírus. As pessoas tomaram um susto enorme, e acredito que eu tenha sido a quarta ou quinta paciente que estava sendo submetida ao teste. Logo me isolaram, e o médico me atendeu com uma roupa especial, fez muitas perguntas. Eu disse o que estava sentido e informei sobre o contato que tive com uma pessoa, com sintomas, que havia retornado da Europa. O médico fez a notificação do meu caso como suspeito. Era uma sexta-feira, dia 13 de março. Fui para casa e fiquei em isolamento desde então.

"A sensação que eu tinha era como se os gânglios estivessem inchados, reduzido a passagem de ar. Foi um dos piores dias da minha vida. No fim daquela tarde, recebi o comunicado da Secretaria de Saúde de que o meu teste tinha dado positivo. Aí, a minha vida se transformou. " - Renata Berenguer

JC – Como tem sido o seu isolamento?

RENATA BERENGUER – Eu moro sozinha. No começo, foi tudo muito difícil, passei por etapas dolorosas. A segunda-feira, dia 16, por exemplo, foi muito ruim. Acordei com dor no corpo e dor de cabeça forte, além de uma falta de ar a ponto de eu não conseguir respirar mais pelo nariz. A garganta não doía, mas a sensação que eu tinha era como se os gânglios estivessem inchados, reduzido a passagem de ar. Foi um dos piores dias da minha vida. No fim daquela tarde, recebi o comunicado da Secretaria de Saúde de que o meu teste tinha dado positivo. Aí, a minha vida se transformou.

JC – Como você se sentiu ao saber que testou positivo para um vírus pouco conhecido?

RENATA BERENGUER – Foi uma das notícias mais difíceis que recebi na minha vida. Na realidade, a dificuldade começou quando eu saí do hospital, pois eu não estava preparada para o isolamento. Aliás, ninguém do Recife estava, pois só havia, como casos confirmados do novo coronavírus, um casal de idosos. Eu cheguei em casa e não tinha comida suficiente. Desde aquele dia, eu já esperava ansiosa o resultado do meu exame. Eu tinha o medo de ter uma doença sobre a qual se conhece pouco, tinha receio das pessoas terem medo de mim e de eu ter contaminado outras pessoas, como pessoas da família: o meu pai, o meu sobrinho bebê, as pessoas queridas e até outras que eu nem conhecia. Vem também a angústia de não saber como tratar a doença. A minha sorte é que a empresa onde trabalho disponibilizou um médico infectologia por 24 horas para mim e me deu todo o suporte necessário. Eu tinha medo de que uma pessoa que teve contato comigo morresse. E meu pai? Meu Deus, eu só pensava nisso! Eu dizia que não iria me perdoar (se algo ruim acontecesse com alguém). Segunda-feira foi o dia, fisicamente e psicologicamente, em que eu estava mais frágil. Ainda tive que lidar com as fake news: as pessoas espalharam que eu estava doente em academia, passando o vírus para muita gente. Era tudo mentira. As pessoas passavam mensagem de ódio para mim. Mas também houve gente que me deu apoio, fez orações...

JC – Por que decidiu falar, em redes sociais, sobre o seu diagnóstico?

RENATA BERENGUER – Não sei o que aconteceu quando saiu o resultado do meu exame. Muitas pessoas ficaram sabendo, achavam que eu estava morrendo na UTI (unidade de terapia intensiva), mas eu fiquei o tempo todo em isolamento domiciliar. Meu telefone não parava de tocar. Foi quando eu preferi informar sobre o meu diagnóstico, mesmo sabendo que muitos iriam me julgar por isso. Mas preferi isso a ter que conviver com o fato de as pessoas acharem que eu estava morrendo. Falei também para as pessoas, que tiveram contato comigo, mas que eu nem conhecia, ficarem informadas, já que poderiam adoecer sem nem saber da possibilidade de coronavírus e contaminar outras.

JC – Percebo muito altruísmo no seu relato, sempre se preocupando com você, mas bem mais com as outras pessoas... 

RENATA BERENGUER – Meu conceito de vida é de servir. Sou muito religiosa. Acredito também na filosofia de que ninguém passa pela vida para ficar no individualismo. A gente está no mundo para doar, para se fazer valer, para ter uma importância na vida de alguém e ajudar as pessoas. Naquele momento em que eu estava doente, eu me socorri a Deus. Abri a Bíblia e olhei os 10 Mandamentos: “amar a Deus sobre todas as coisas e, ao próximo, como a si mesmo”. Então, eu acredito que nós temos que cuidar das pessoas. Se esse não for o sentido da vida, não tem por que a gente existir. 

JC – Como foi o seu tratamento em casa? 

RENATA BERENGUER – No momento em que recebi a notícia sobre o diagnóstico positivo de covid-19, meu estado clínico já vinha piorando. O médico passou alguns remédios e, ao longo de todo o processo, a gente convive com dias bons e ruins da doença. Os sintomas, que se confundem com os de outra doença, vão embora e voltam. Uma hora sentimos dor de garganta, depois vem a dor de cabeça, outra hora vêm um espirra e uma tosse. São sintomas que vão se intercalando. Às vezes, tinha o falso sentimento de que estava melhor, mas repentinamente vinha um sintoma mais forte. Os únicos sinais que me acompanharam, do começo ao fim da doença, foram dor de cabeça, mudando a intensidade, e a falta do olfato e do paladar. Eu pensei que meu perfume estava ruim, porque eu não sentia o cheiro. Houve um dia em que passei bem mal, acordei com dor no corpo intensa e dor de cabeça fortíssima. Foi horrível. É um momento difícil pela ausência de informações, pela falta de tratamento, pelo preconceito das pessoas, pelo fato de a gente não saber por que sintoma vai passar. Eu perguntava a Deus: “por que comigo?”. Passar por tudo aquilo sem estar por perto dos meus pais, das minhas irmãs... Depois que tudo passou, eu olho para trás e digo: “ainda bem que foi comigo, pois eu tinha condições psicológicas, condições financeiras para comprar remédios e para ter acesso a médicos... Ainda bem que foi comigo para eu dizer às pessoas que isso existe e que consegui passar pela doença, mas não é fácil”. Precisamos da conscientização de toda a sociedade para entender que esse é um tempo de mudança, de cuidado e que todos nós, juntos, somos a única forma de vencer. 

JC – A dor de cabeça era o que mais a incomodava? 

RENATA BERENGUER – Houve um dia em que foi tão forte que meu médico disse para eu voltar ao hospital. Eu não queria, tinha receio de sair e contaminar outras pessoas, eu tinha medo de as pessoas acharem que eu estava furando o isolamento. Mas liguei para o hospital, e disseram para eu retornar. Foi tão estranho, pois eu até estava me sentindo melhor e, do nada, vêm os sintomas da doença bem fortes. Era uma dor de cabeça insuportável, que me impedia de andar, de movimentar a cabeça... Também tinha uma dor no corpo imensa e cheguei a pensar que iria morrer. Eu já não sabia mais o que fazer em relação à doença, pois eu estava tomando remédio, me cuidando, fazendo de tudo e a doença não passava, não me deixava. Foi um dia bem difícil. Quando cheguei ao hospital, fizeram exames, me deram um remédio bem forte e, graças a Deus, não me internaram. Voltei para minha casa, continuei o isolamento domiciliar e o tratamento. 

JC – Como foi saber que estava recuperada do novo coronavírus? 

RENATA BERENGUER – Soube por uma ligação da Secretaria de Saúde de que eu estava bem. Eles contaram 14 dias desde o relato do meu primeiro sintoma. Quando fiquei boa da doença, toda a sociedade já estava em isolamento, o que é uma situação bem difícil. Além dos problemas físicos, há os problemas de ansiedade.

JC – Passada esta fase de isolamento social vivida por todos nós, o que mais você tem vontade de fazer? 

RENATA BERENGUER – Quero ver meus pais, abraçar toda a minha família, meu sobrinho, meu afilhado, minha sobrinha, minhas irmãs... Quero agradecer à empresa onde trabalho porque, sem eles, não sei se estaria viva; eles me deram muito apoio. O isolamento nos ajuda a refletir sobre uma mudança que a que somos obrigado a fazer por uma coisa completamente estranha a nós mesmos, por algo que a gente não consegue nem ver. Durante o isolamento, eu li, pesquisei, estudei, trabalhei... Tentei fazer de mim o mais útil que eu poderia ser para ajudar o maior número de pessoas. Eu me abracei à possibilidade de mudar e de melhorar como pessoa e profissional. Ah, e ainda bem que foi comigo, porque, graças a Deus, tive oportunidade de me tratar, e o meu corpo reagiu ao coronavírus. Espero que, passado tudo isso, as pessoas tenham o mesmo sentimento que eu: mesmo diante de um cenário de caos, podemos encontrar coisas boas, apegar-se a elas e nos tornar cidadãos melhores. Hoje eu agradeço a Deus por ter passado por isso tudo, pois foi uma grande oportunidade na minha vida de fazer diferente. 

JC – O que diria a uma pessoa que está passando agora pela doença? 

RENATA BERENGUER – O sentimento é mesmo medo em relação a tudo: medo da doença, do que ela pode causar, da sociedade que a gente vive... Mas passei por isso e sou a prova de que tudo isso passa. Temos que aproveitar o tempo de isolamento para nos cuidarmos. Tenho certeza de que há muitas pessoas como eu, que vivia trabalhando muito, com uma vida intensa, fazendo a gente sobreviver ao invés de viver. É um momento que a gente tem para refletir, aproveitar para repensar nos nossos atos diante das pessoas ao nosso redor, repensar sobre a importância do abraço, de um diálogo, de um carinho. Todo o mundo, neste período, vai perceber a importância de pequenos gestos. Isolamento é um gesto de amor, um gesto que todos nós, pobres ou ricos, somos capazes de fazer, pois é só ficar em casa para que os profissionais de saúde possam alcançar o conhecimento sobre o tratamento. Se todo o mundo for para a rua, o vírus vai se propagar mais rápido, os hospitais ficarão mais cheios do que já estão e os médicos podem se contaminar. Sem eles, não temos o tratamento adequado. Eu sou a prova de que conseguimos passar por tudo isso e tirar grandes lições.

TAGS
coronavírus covid-19 pernambuco
Veja também
últimas
Mais Lidas
Webstory