“Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre”. Frequentemente nos últimos dias, essa frase repleta de princípios hipocráticos salta à mente quando pensamos no papel dos profissionais de saúde. São eles que têm deixado suas casas diante da maior crise de saúde pública da história recente do Brasil: a explosão de casos do novo coronavírus e suas consequências socioeconômicas que ainda estão por vir.
O dilema que eles vivenciam é imenso: tem a missão diária de estar expostos ao risco de trabalhar, na linha de frente, com uma doença altamente transmissível. Ao mesmo tempo, eles se veem diante do medo e da ansiedade como todos nós. Mas optam por seguir com o papel de soldados do cuidado cara a cara com um agente infeccioso invisível – e apenas isso basta para eles merecem todo o nosso apoio, que devemos permanecer em casa por eles e por toda a humanidade.
“Precisamos proteger os nossos heróis, que são todos que atuam na Saúde: médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, maqueiros e muitos outros. São essas pessoas que estão no front. Merecem todo o nosso respeito e a nossa proteção. Queremos que os médicos tenham condições de trabalho e continuem os nossos heróis. Eles estão em sacrifício da própria vida. Vejo jovens médicos indo para cima (no combate ao novo coronavírus), dando tudo o que eles têm”, diz, superemocionado, o médico cardiologista Mário Fernando da Silva Lins, presidente do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe). Aos 72 anos, aposentado, ele diz que está pronto para um possível momento em que o Estado precise dele na assistência aos doentes com covid-19.
“Vejo colegas com mais de 60 anos (grupo de risco para a infecção) que desejam continuar atendendo. Isso é louvável. Se chegar à necessidade de os aposentados irem para o front, eu estarei lá na frente, vou tranquilo, sem nem pensar. Nessas horas, reconhecemos o homem, e nós fomos treinados para essa missão”, destaca Mário Fernando, que faz questão de enaltecer o valor da rede pública. “Temos uma coisa que nenhum lugar do mundo tem: o Sistema Único de Saúde (SUS). Somos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que tem uma rede de saúde com uma capilaridade fantástica. Ela precisa ser aprimorada, financiada e reconhecida, pois é a equipe desse sistema que vai suporte nestes momentos de epidemias”, acrescenta.
O depoimento de Mário Fernando ilustra o sentimento da categoria da qual faz parte, transborda para outras classes trabalhadoras da Saúde e chega até vários segmentos da sociedade. Mesmo distantes fisicamente, nunca estivemos tão juntos. Nunca estivemos tão firmes e conscientes de que saúde é o nosso maior patrimônio.
"Nesta epidemia, rapidamente se agregaram os médicos da pneumologia. Afinal, o órgão de choque principal da doença, em disparado, são os pulmões. Gradualmente está acontecendo uma adesão de médicos de outras especialidades. Todos têm a sua utilidade. Precisamos da cardiologia, da gastrologia, da geriatria... O que eu mais queria agora, como pessoa e pai de família, era estar isolado em casa. Queria ter essa chance de proteger a mim e a minha família, mas tenho o imperativo da profissão e da especialidade. Não tenho como me esquivar de ir para a rua e atender meus pacientes. Precisamos segurar uma barra grande por ter que, todos os dias, sair de casa e dizer à família que estamos indo cuidar dos pacientes. A sensação é semelhante à de um soldado que tem que ir para o campo de batalha. Mas ele tem que ir porque, se não for, vai ser pior para todo mundo, inclusive para a família dele. Não pensemos que a coisa é leve, simples e suave; é difícil, mas a gente tem que fazer, e estamos fazendo. Acredito que todo o mundo hoje vive uma experiência que nunca viveu antes: as pessoas passam por privações materiais e emocionais. Médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde são gente e estão passando por isso também, mas eles têm que sair para a luta. A hora agora é de trabalhar, de fazer ainda mais”, diz o pneumologista Alfredo Leite, 47 anos, que cuida de pacientes com covid-19 no Hospital Universitário Oswaldo Cruz
"Profissionalmente esta pandemia é o meu maior desafio. Até a covid-19 chegar, achávamos que a nossa maior missão tinha sido a Copa do Mundo (em 2014), que teve São Lourenço da Mata (Grande Recife) como uma das cidades-sede. Montamos quase uma operação de guerra, com hospital de campanha e equipes capacitadas para atuar em acidentes. Então, esse time que está hoje no enfrentamento ao novo coronavírus já tinha recebido treinamento lá atrás para atuar numa situação como a atual. Os nossos equipamentos de proteção individual já existiam antes de recebermos o primeiro caso suspeito de covid-19 (em 25 de fevereiro), uma mulher que estava em avião que pousou no Recife. Não posso dizer que estamos confortáveis. Sabemos da realidade exposta e que o serviço de saúde pode colapsar a qualquer momento. É difícil, e há uma mobilização de todo o Samu para ofertar o que for preciso. Somos um time de aproximadamente 700 profissionais. Eu preciso primeiramente manter o autocontrole diante de tudo que está acontecendo para coordenar as pessoas que também estão vivendo isso pela primeira vez. Acredito que viveremos um momento pós-pandemia pior do que a pandemia. Síndrome de burnout e demais transtornos psiquiátricos poderão surgir. É como se agora a gente abrisse feridas que só vão doer lá na frente”, diz o cirurgião-geral e urologista Leonardo Gomes, 41 anos, diretor-geral do Samu Metropolitano do Recife
Para mim, o cenário atual é de um aprendizado gigante. Estou tranquilo por já ter atuado com terapia intensiva antes de covid-19, dando assistência a pacientes graves. O lado social desta pandemia é algo difícil de lidar. A população está amedrontada, e o impacto social será grande, principalmente porque outras doenças continuam a existir. Quero destacar também a segurança com que trabalhamos. Temos equipamentos de proteção individual que não nos deixam descobertos. Como ser humano, contudo, pensamos na família. O que me dá receio é a possibilidade de eu levar algo (o vírus) para casa. Minha esposa e eu conversamos sobre isso. Avaliamos se, ao invés de voltar para casa (no Recife), após o meu plantão na UTI de coronavírus, eu deveria ir diretamente para João Pessoa (onde faz residência médica). Analisamos direitinho, pois já passo tanto tempo sem ver os meus dois filhos... Mas está dando para voltar para casa. Lembro que, quando soube que trabalharia em UTI de covid-19, tive um impacto. A partir do momento em que percebemos que estamos bem paramentados, vem a segurança. Usamos capote estéril, avental, máscara, gorro, óculos, macacão impermeável. O cuidado é com aqueles pacientes que são positivos para covid-19. Sigo a conduta adequada para não levar (o vírus) para outros pacientes que estão com suspeita da doença. A tensão é imensa, mas temos feito um trabalho grande”, diz o médico residente em anestesiologia Igor Carvalho Vasconcelos, 38 anos, plantonista de unidade de terapia intensiva (UTI) voltada para o coronavírus