Canabidiol no Brasil: polêmica nas redes sociais movimenta debate
O produto medicinal é autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas a comunidade médica ainda possui divergências sobre o uso
O debate sobre o uso de derivados da cannabis sativa para fins medicinais vem se intensificando no Brasil desde 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou a aquisição e prescrição do canabidiol (CBD), um dos 80 derivados canabinoides da cannabis sativa, comercializado majoritariamente em forma de óleo.
De acordo com o Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil 2023, com informações da Anvisa, no País, cerca de 440 mil pessoas utilizam tratamentos à base da cannabis.
Em Pernambuco, não existem dados públicos sobre quantos pacientes utilizam tratamentos canábicos. Contudo, a Amme Medicinal e a Aliança Medicinal (as duas associações que são autorizadas para cultivo no Estado) somam juntas mais de 4 mil associados - ou seja, pessoas que obtêm o óleo CBD por meio das instituições.
Segundo a lei 11.343/2006, o consumo recreativo da maconha é proibido, bem como o plantio ou a utilização de derivados. Pode haver autorização do plantio para fins medicinais ou científicos, com prazos determinados e fiscalização.
Vale destacar que as últimas movimentações do Supremo Tribunal Federal (STF), em julho, em relação ao porte de maconha, não têm relação com o uso medicinal da planta. Logo, na decisão da Corte, não há discriminação sobre o canabidiol.
Polêmica nas redes sociais
Recentemente, o canabidiol apareceu no centro de um debate nas redes sociais, envolvendo a influenciadora Isabel Veloso, de 18 anos.
Natural do Paraná, ela ganhou destaque nas redes sociais no início deste ano, após compartilhar a rotina, enquanto paciente com câncer. A paranaense possui diagnóstico para um tipo de câncer chamado linfoma de Hodgkin, que se origina no sistema linfático.
A publicidade que a influencer deu ao diagnóstico da doença, o anúncio de uma gravidez e a divulgação de parcerias publicitárias geraram uma série de polêmicas na internet.
Isabel Veloso divulgava abertamente nas redes sociais o uso do canabidiol, sempre mencionando e indicando direta e indiretamente a Golden Drops, empresa que comercializa o CBD e outros produtos à base de maconha.
A influenciadora chegou a alegar, inclusive, que o óleo havia estabilizado o crescimento dos tumores que possuía alojados. Em entrevista concedida a uma rádio do Paraná, Isabel afirmou: "Foi o canabidiol que conseguiu controlar minha doença e retardar o crescimento [dos tumores]".
A situação se complicou ainda mais pelo fato do pai de Isabel, Joelson Veloso, ser representante comercial da Golden Drops no Paraná.
A influenciadora foi ainda nomeada como representante publicitária da marca e chegou a ser divulgada, em publicação da loja, como “embaixadora”.
O primeiro ponto polêmico do caso envolve a possível eficácia do produto para diminuição de tumores.
Estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), ligados ao curso de medicina de Ribeirão Preto, indicam potenciais benefícios para sintomas advindos do tratamento da doença, realizado com quimioterapias, como a melhora da dor, náuseas, diminuição da falta de sono e relaxamento muscular. Até o momento, a comunidade médica não têm uma posição sobre a diminuição dos tumores malignos.
A propaganda realizada por Isabel é proibida pela Anvisa. De acordo com a RDC 327/2019: Art.12, é proibida qualquer publicidade dos produtos de Cannabis. RDC é a sigla para Resolução da Diretoria Colegiada, que a Anvisa utiliza para regulamentação técnica.
Além disso, a loja “parceira” da influenciadora não aparece na lista de locais autorizados a comercializar o CBD na Anvisa.
Segundo a Anvisa, a publicidade de medicamentos para o público em geral é permitida apenas para aqueles que não exigem prescrição médica. Já para os produtos medicinais que necessitam de prescrição, caso do canabidiol, os anúncios podem ser direcionados a profissionais de saúde autorizados a prescrever ou dispensar esses produtos.
O Jornal do Commercio entrou em contato com a assessoria da Golden Drops, mas não recebeu retorno até a última atualização desta matéria.
Regulamentação da venda do canabidiol
Em entrevista ao Jornal do Commercio, o advogado e professor de direito penal da UniFafire Wagner Solano destaca que a comercialização do produto medicinal é regulamentada. "Só quem pode comercializar canabidiol são as farmácias com autorização da Anvisa ou através das associações que produzem esses produtos também com autorização do órgão", afirmou.
Logo, a propaganda pode ser considerada indevida ao não possuir nenhuma advertência, que é exigida por lei e normalmente se vê em propagandas na TV e no rádio.
"Se ela [Isabel] fosse receber dinheiro para divulgar qualquer medicamento, deveria, conforme o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária e a Anvisa, fazer essa advertência no final", destaca o especialista.
As divulgações de Isabel eram variadas, com indicações nos stories do Instagram, com marcação do perfil da loja, até as falas em entrevistas.
Após o anúncio da gravidez da influenciadora, a clínica-geral Melina Branco Behne, responsável pelo tratamento de Isabel, foi a público e explicou que o tratamento com CBD havia sido suspenso. Afinal, ainda não existem evidências suficientes que determinem o efeito do produto em gestantes.
Indicações do canabidiol
A polêmica em torno do CBD, diante do caso Isabel Veloso, levantou questões importantes a serem discutidas sobre o produto, que é regulamentado pela Anvisa.
Antes de tudo, é importante destacar que o canabidiol não apresenta efeitos psicoativos e não é classificado como entorpecente. De acordo com a Anvisa, o uso é seguro desde que sejam observadas as indicações e contra indicações por médico responsável.
A médica de família e comunidade Adriana Alencar já prescreve o canabidiol através do Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade do Recife. Segundo ela, há indicações “extremamente fundamentadas” sobre o produto.
"Dor crônica, pessoas em tratamento de câncer, grande parte dos pacientes com autismo também se beneficia, epilepsia, que é o carro-chefe, certas síndromes genéticas, doenças neurodegenerativas e doenças autoimunes", elenca a médica.
Adriana ressalta que a comunidade médica já possui uma vasta literatura científica que embasa o uso do canabidiol em diversas patologias. "Como realmente é muito mais estudado nos casos de epilepsia e convulsões, a comunidade conhece trabalhos que falam dessas patologias, e não na gama de patologias para a qual nós prescritores canábicos indicamos", diz.
Entretanto, a questão da prescrição médica gera opiniões divergentes entre especialistas. O psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), expressa preocupação com a possível redução da percepção de risco associada ao uso do canabidiol.
"Como médico psiquiatra, a minha principal preocupação é a redução da percepção de risco do uso dessas substâncias com o uso do terno 'medicinal'. Assim, as pessoas diminuem a percepção do risco e a gravidade do uso dessas substâncias. Quanto menor a percepção de risco, maior será o consumo", alerta.
Ele destaca que a formulação de produtos deve seguir diretrizes internacionais baseadas em evidências científicas sólidas. "Não há comprovação científica em relação ao uso de canabidiol para o tratamento de nenhuma doença psiquiátrica", afirma o presidente da ABP.
"O uso de cannabis pode desencadear doenças mentais em pessoas que já tinham uma predisposição para tal e agravar ainda mais os transtornos psiquiátricos já existentes", completa Antônio Geraldo.
Prescrição fica a critério do médico
A última resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o produto, de Nº 2.324/22, autorizava a prescrição do CBD apenas para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente, para tratamento da síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no complexo de esclerose tuberosa, além de indicar a prescrição apenas após a utilização de métodos convencionais.
A decisão gerou grande repercussão e pessoas que já utilizavam o óleo para outras indicações, como alívio dos sintomas do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtorno do espectro autista (TEA), pressionaram o conselho, que - alguns dias após a publicação - suspendeu a decisão por meio da Resolução Nº 2.326/22. Até o momento, não houve mais nenhum posicionamento do CFM sobre o CBD.
Assim, a indicação do produto voltou a ser inteiramente de responsabilidade do médico, de acordo com regras já estabelecidas pela Anvisa para prescrição.
Por isso, pessoas que desejam fazer o uso do produto podem procurar, além de médicos particulares, médicos que realizam a prescrição do produto através do Sistema Único de Saúde.
Um exemplo é o ambulatório canábico do Serviço Integrado de Saúde (SIS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Localizado no bairro do Engenho do Meio, Zona Oeste do Recife, o espaço é uma parceria da universidade e da Secretaria de Saúde do Recife (Sesau).
Por lá, é possível ter acesso ao ambulatório canábico, iniciativa ligada ao SUS. Os pacientes podem tirar dúvidas sobre o consumo, indicações e conseguir, por meio do médico responsável, a prescrição do CBD. O encaminhamento pode vir de unidades de saúde ou das associações canábicas, que fazem a ponte.
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