Após 2 anos, ninguém foi punido pelo furto de mais de 1,1 mil armas da Polícia Civil, no Recife
Armas de fogo foram desviadas da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil, na área central do Recife, e vendidas para facções criminosas
Dois anos após a descoberta do furto de mais de 1,1 mil armas de fogo que estavam guardadas em um depósito da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil de Pernambuco, na área central do Recife, ninguém foi punido.
O processo criminal contra 19 pessoas - incluindo quatro policiais civis - segue em andamento na Justiça, sem prazo para a sentença. Já os processos administrativos disciplinares, que podem resultar na demissão dos policiais, também não foram concluídos pela Corregedoria Geral da Secretaria de Defesa Social (SDS). Ambas as investigações estão sob sigilo.
O sumiço das armas foi descoberto por um comissário da Polícia Civil, responsável pela manutenção e conserto delas, em 05 de janeiro de 2021, logo após ele voltar de férias. Na ocasião, um inquérito policial foi instaurado e uma auditoria foi realizada pra identificar o número exato do desvio.
Em agosto do mesmo ano, após uma operação que prendeu cinco policiais civis suspeitos de envolvimento no esquema, a chefia da Polícia Civil fez uma coletiva de imprensa e anunciou o número de 326 armas subtraídas.
Mas um documento assinado pelo delegado Adelson Barbosa em fevereiro de 2021 e enviado à Polícia Federal revelou que 1.131 armas - entre metralhadoras, pistolas e revólveres - desapareceram da Core. A revelação foi feita com exclusividade pelo Jornal do Commercio.
Em abril de 2022, durante audiência de instrução e julgamento do caso, o delegado Adelson Barbosa, que trabalhava na Core, prestou depoimento por videoconferência e, questionado pelo Ministério Público, confirmou que mais de 1 mil armas foram furtadas do depósito.
No depoimento, o delegado disse ainda que foi repassada à Polícia Federal a lista das armas subtraídas para que os dados fossem incluídos no Sinarm (Sistema Nacional de Armas), do Ministério da Justiça.
FALHAS DE SEGURANÇA
Além das armas de fogo, mais de 3 mil munições foram furtadas. A perícia não encontrou sinais de arrombamento no depósito onde os materiais estavam guardados.
Por uma falha grave de segurança, no interior do setor de armaria não havia câmeras. Mas havia uma do lado de fora, apontada para a porta de entrada. Foi descoberto, no entanto, que o equipamento não funcionava 24 horas por dia.
Entre as armas desviadas, 119 pertenciam à Guarda Municipal de Ipojuca, no Grande Recife. Elas estavam guardadas na Core enquanto os profissionais passavam por treinamento. As pistolas haviam sido doadas pela Polícia Rodoviária Federal.
Em depoimento à polícia, ainda em janeiro de 2021, um detento revelou que, anos antes, havia se dirigido à Core para comprar munições destinadas a uma facção criminosa - indicando aos delegados que a prática ilegal não era recente na unidade policial. O vendedor teria sido justamente um dos policiais civis que acabou indiciado ao final da investigação.
"BLACK FRIDAY" DE ARMAS DE FOGO
Outros depoimentos revelaram a suposta ligação de comissários da Core com criminosos. A venda de munições e carregadores de pistolas seria prática comum e antiga. Uma caixa com 50 munições era vendida por R$ 350, revelam depoimentos.
Interceptações telefônicas também apontaram que armas desviadas da Core foram comercializadas para facções criminosas por valores que variavam de R$ 6,3 mil a 6,5 mil, cada uma. Já as submetralhadoras custavam R$ 22 mil nesse comércio ilegal.
Integrantes ou pessoas ligadas a pelo menos duas organizações criminosas - incluindo detentos do Estado - foram identificados e fazem parte do rol de denunciados à Justiça.
No inquérito policial, os delegados Cláudio Castro e Guilherme Caraciolo classificaram o esquema como uma “Black Friday”.
“Em virtude da falta de controle e um software onde todo o acervo bélico da polícia pudesse ser relacionado, policiais que trabalhavam diretamente com o acervo, se aproveitaram da facilidade de acesso e falhas na segurança, e passaram a desviar armas, munições e acessórios, revendendo esse material de maneira indiscriminada para todo e qualquer tipo de criminoso, integrante ou não de organizações criminosas", descreveram no relatório policial.
"Uma verdadeira ‘Black Friday’ de armas, munições e acessórios. Houve criminoso que comprou e houve criminoso que intermediou a venda, e assim os valores da comercialização foram sendo majorados e se disseminando a oferta e a procura”, disseram.
PROCESSO NA JUSTIÇA
O processo criminal contava com 20 nomes, mas um policial civil faleceu poucos dias após ser preso. Eles respondem por crimes como organização criminosa, comércio ilegal de armas de fogo, peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva.
O processo está na fase de audiências de instrução e julgamento, que precisaram ser interrompidas em maio de 2022 à espera de laudos com as análises de 35 aparelhos celulares dos acusados.
Em 09 de novembro do mesmo ano, a Justiça decidiu conceder a liberdade provisória de 14 acusados, incluindo três policiais civis, já que houve excesso de cumprimento de prazo para que o Ministério Público, junto à polícia, apresentasse esses laudos periciais.
QUEM SÃO OS POLICIAIS ACUSADOS?
1 - Cleidio Graf Gonçalves Torreiro (comissário da Polícia Civil)
Apontado pelos investigadores como “o grande mentor/articulador” de todo o esquema de desvio de armas, munições e acessórios. Detinha acesso irrestrito à armaria da Core. “Sem qualquer justificativa, frequentava aos sábados e domingos a armaria. Manipulava planilhas com a inserção e supressão de dados. Utilizava intermediários na comercialização”, pontuou relatório da Polícia Civil. Ainda teria adquirido casa de veraneio e automóvel em nomes das filhas.
2 - José Maria Sampaio Filho (comissário da Polícia Civil)
Foi reconhecido por uma testemunha por ter, em três momentos, “repassado grande quantidade de munição comercializada, que se destinou a uma facção criminosa. Numa operação da polícia, em agosto, para cumprir mandados de prisão contra os investigados, o policial foi flagrado na posse irregular de uma arma de fogo calibre 9mm sem registro.
3 - Josemar Alves dos Santos (comissário da Polícia Civil)
Investigação apontou que ele auxiliava Cleidio no desvio das armas, munições e acessórios, manipulando as informações em planilhas no setor administrativo.
4 - Edson Pereira da Silva (comissário da Polícia Civil)
Segundo as investigações, “faltou com dever funcional realizando pesquisas no sistema integrado da Polícia Civil para integrantes da organização criminosa, justamente de um desafeto que eles estavam procurando para matar”.
5 - Carlos Fernandes Nascimento (agente administrativo da Polícia Civil)
“Fez contatos, intermediou, despachou e arrecadou dinheiro da venda de munições, armas e carregadores desviados da Core”, descreve o inquérito. Ele faleceu 17 dias após ser preso.