IMPUNIDADE

Após 3 anos, Justiça e SDS não puniram réus pelo desvio de 1,1 mil armas da Polícia Civil, no Recife

Armas de fogo e milhares de munições foram furtadas da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil de Pernambuco e vendidas para facções criminosas

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Raphael Guerra

Publicado em 16/01/2024 às 10:46 | Atualizado em 16/01/2024 às 22:34
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Três anos após a descoberta do desvio e venda de mais de 1,1 mil armas de fogo que estavam guardadas em um depósito da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil de Pernambuco, na área central do Recife, não houve punição para os acusados. 

O processo criminal contra 19 pessoas - incluindo quatro policiais civis (eram cinco, mas um faleceu menos de um mês após ser preso) - segue em andamento no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), sem prazo para a sentença. Os réus respondem por crimes como organização criminosa, comércio ilegal de armas de fogo, peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva.

De acordo com o promotor Roberto Brayner, que faz parte da força-tarefa criada pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para acompanhar o processo criminal, a fase de audiências de instrução e julgamento foi concluída.

"Foi dado prazo para o MPPE requerer diligências, mas nenhuma foi solicitada. Depois o prazo foi dado para a defesa. São muitos advogados. Após isso, a Justiça dará prazo para as alegações finais da acusação e defesa. Vamos estudar o caso e decidir se pediremos as condenações de todos os réus, conforme a denúncia, ou se pediremos a absolvição de alguns deles, por exemplo. Essa decisão ainda será tomada", explicou o promotor. 

Os processos administrativos disciplinares, que podem resultar na demissão dos policiais civis, também não foram concluídos pela Corregedoria Geral da Secretaria de Defesa Social (SDS). Em nota, a assessoria do órgão estadual declarou que os processos estão em fase final, "aguardando documentação do Poder Judiciário, a fim de que seja possível a elaboração de relatório conclusivo".

"Dos quatro policiais civis, três já estão aposentados e apenas o comissário de Polícia Civil Edson Pereira da Silva permanece no exercício das funções, uma vez que o mesmo não estava lotado na Core durante as investigações e deflagração da operação", disse a assessoria. 

POLICIAL DESCOBRIU SUMIÇO DE ARMAS

O sumiço das armas foi descoberto por um comissário da Polícia Civil, responsável pela manutenção e conserto delas, em 5 de janeiro de 2021, após ele voltar de férias. Na ocasião, um inquérito policial foi instaurado e uma auditoria foi realizada pra identificar o número exato do desvio.

Em agosto do mesmo ano, após uma operação que prendeu cinco policiais civis suspeitos de envolvimento no esquema, a Polícia Civil fez uma coletiva de imprensa e anunciou o número de 326 armas subtraídas.

Mas um documento assinado pelo delegado Adelson Barbosa em fevereiro de 2021 e enviado à Polícia Federal revelou que 1.131 armas - entre metralhadoras, pistolas e revólveres - desapareceram da Core. A revelação foi feita com exclusividade pelo Jornal do Commercio.

Em abril de 2022, durante audiência de instrução e julgamento dos réus, o delegado Adelson Barbosa, que trabalhava na Core, prestou depoimento por videoconferência e, questionado pelo Ministério Público, confirmou que mais de 1 mil armas foram furtadas do depósito.

No depoimento, o delegado disse ainda que foi repassada à Polícia Federal a lista das armas subtraídas para que os dados fossem incluídos no Sinarm (Sistema Nacional de Armas), do Ministério da Justiça.

Em 09 de novembro de 2022, a Justiça concedeu a liberdade provisória de 14 acusados, incluindo três policiais civis, sob a alegação de que houve excesso de cumprimento de prazo para que o MPPE, junto à polícia, apresentasse os laudos de perícias realizadas nos aparelhos celulares dos réus.

FALHAS DE SEGURANÇA 

Além das armas de fogo, mais de 3 mil munições foram furtadas. A perícia não encontrou sinais de arrombamento no depósito onde os materiais estavam guardados.

Por uma falha grave de segurança, no interior do setor de armaria não havia câmeras. Mas havia uma do lado de fora, apontada para a porta de entrada. Foi descoberto, no entanto, que o equipamento não funcionava 24 horas por dia.

Entre as armas desviadas, 119 pertenciam à Guarda Municipal de Ipojuca, no Grande Recife. Elas estavam guardadas na Core enquanto os profissionais passavam por treinamento. As pistolas haviam sido doadas pela Polícia Rodoviária Federal.

WILDERSON PIMENTEL/SECOM IPOJUCA
SUMIÇO Doadas pela Polícia Rodoviária federal para a Prefeitura de Ipojuca, pistolas foram desviadas da Core - WILDERSON PIMENTEL/SECOM IPOJUCA

Em depoimento à polícia, ainda em janeiro de 2021, um detento revelou que, anos antes, havia se dirigido à Core para comprar munições destinadas a uma facção criminosa - indicando aos delegados que a prática ilegal não era recente na unidade policial. O vendedor teria sido justamente um dos policiais civis que acabou indiciado ao final da investigação.

"BLACK FRIDAY" DE ARMAS DE FOGO

Outros depoimentos revelaram a suposta ligação de comissários da Core com criminosos. A venda de munições e carregadores de pistolas seria prática comum e antiga. Uma caixa com 50 munições era vendida por R$ 350, revelam depoimentos.

Interceptações telefônicas também apontaram que armas desviadas da Core foram comercializadas para facções criminosas por valores que variavam de R$ 6,3 mil a 6,5 mil, cada uma. Já as submetralhadoras custavam R$ 22 mil nesse comércio ilegal.

Integrantes ou pessoas ligadas a pelo menos duas organizações criminosas - incluindo detentos do Estado - foram identificados e fazem parte do rol de denunciados à Justiça.

No inquérito policial, os delegados Cláudio Castro e Guilherme Caraciolo classificaram o esquema como uma "Black Friday".

"Em virtude da falta de controle e um software onde todo o acervo bélico da polícia pudesse ser relacionado, policiais que trabalhavam diretamente com o acervo, se aproveitaram da facilidade de acesso e falhas na segurança, e passaram a desviar armas, munições e acessórios, revendendo esse material de maneira indiscriminada para todo e qualquer tipo de criminoso, integrante ou não de organizações criminosas", descreveram no relatório policial. 

"Uma verdadeira 'Black Friday' de armas, munições e acessórios. Houve criminoso que comprou e houve criminoso que intermediou a venda, e assim os valores da comercialização foram sendo majorados e se disseminando a oferta e a procura", disseram. 

 

ARTES JC
O comércio ilegal - ARTES JC

 

QUEM SÃO OS POLICIAIS ACUSADOS?

1 - Cleidio Graf Gonçalves Torreiro (comissário da Polícia Civil)

Apontado pelos investigadores como "o grande mentor/articulador" de todo o esquema de desvio de armas, munições e acessórios. Detinha acesso irrestrito à armaria da Core. "Sem qualquer justificativa, frequentava aos sábados e domingos a armaria. Manipulava planilhas com a inserção e supressão de dados. Utilizava intermediários na comercialização”, pontuou relatório da Polícia Civil. 

Em nota, a defesa afirmou que está crente na absolvição dele. 

2 - José Maria Sampaio Filho (comissário da Polícia Civil)

Foi reconhecido por uma testemunha por ter, em três momentos, "repassado grande quantidade de munição comercializada", que se destinou a uma facção criminosa.

A reportagem não conseguiu contato com a defesa do réu. 

3 - Josemar Alves dos Santos (comissário da Polícia Civil)

Investigação apontou que ele auxiliava Cleidio no desvio das armas, munições e acessórios, manipulando as informações em planilhas no setor administrativo.

Em nota, a defesa afirmou que ele "confia na sua absolvição pois mesmo após intensa investigação nada ficou provado contra ele".

4 - Edson Pereira da Silva (comissário da Polícia Civil)

Segundo as investigações, "faltou com dever funcional realizando pesquisas no sistema integrado da Polícia Civil para integrantes da organização criminosa, justamente de um desafeto que eles estavam procurando para matar".

A reportagem não conseguiu contato com a defesa do réu.

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