Sobre o cinema que surge nos Estados Unidos dos anos 1970, a Nova Hollywood, o historiador do cinema Mark Cousins relata que há três conduções que aquelas produções vão assumir: a dissidência, a assimilação e a sátira. Esta última, ele classifica como o pontapé inicial desse novo momento. “Muitos da contracultura dos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 pensaram: Não dá mais para salvar a sociedade, então vamos satirizá-la”. É o que fez MASH, do ousado Robert Altman, colocando a guerra e a estrutura militar dos Estados Unidos sob as lentes do ridículo. Pavimentando ainda um belo caminho para a arte debochada enquanto ferramenta social. O filme celebra 50 anos neste 2020, com seu lançamento no Brasil realizado neste 6 de abril, há meio século.
MASH foi considerado pelo executivos da Fox como um filme que não foi lançado, mas um que escapou. O roteiro sobre a base caótica de uma equipe médica durante a Guerra da Coreia (1950 -1953) adaptava o romance de mesmo nome e chegou a ser recusado por 14 diretores. Caiu nas mãos de um veterano da Segunda Guerra Mundial, que estava farto de seus trabalhos na televisão e viu ali uma oportunidade. Foi assim que Robert Altman (Nashville, Short Cut: Cenas da Vida) começou seu lançamento rumo ao panteão dos grandes diretores da história do cinema americano. E acabou trazendo consigo ao estrelato gente como Donald Sutherland, Robert Duvall e Elliott Gould.
O enredo de MASH é simples de ser explicado. Os cirurgiões Hawkeye, Trapper e Duke, recrutados pelo exército americano, são instalados em uma base médica militar na Coreia do Sul. Lá, realizam cirurgias sangrentas e outros procedimentos médicos, tentando salvar vidas. Mas a disciplina militar passa longe, menosprezada pela maior parte da equipe, que busca no álcool, sexo e deboche um escape para o tédio e uma maneira de lidar com a perda gradual do sentido da guerra. Agora colocar em palavras o fascinante caos visual, sonoro e narrativo executado pela direção de Altman é uma tarefa mais difícil.
Na época, a Fox estava produzindo outros dois filmes tendo a guerra como temática: Patton: Rebelde ou Herói? e Tora! Tora! Tora!, ambos donos de um orçamento voluptuoso. Com um investimento mais modesto, cerca de US$ 3,1 milhão, Altman sabia que poderia ousar na surdina, desde que não estourasse os gastos. Foi assim filmou de maneira igualmente caótica MASH. Improvisos, confusões, baldes de sangue e conflitos. Esse era o set da produção. As estrelas Sutherland e Gould, insatisfeitas com os métodos do cineasta, tentaram cavar sua demissão nos bastidores. Anos mais tarde, Altman declararia que se tivesse ciência disso na época, teria se afastado do projeto.
Ainda bem que ele não soube, pois MASH conquistou de cara a crítica e o público. Arrecadou cerca de US$ 81 milhões, muito mais que os outros filmes de guerra do estúdio, que custaram de 4 a 9 vezes mais para serem feitos. A exibição para os executivos da Fox não agradou nada, mas foram convencidos de fazer uma exibição teste em São Francisco, que deu muito certo. O filme venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes e ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Elliott Gould mandou uma carta pedindo desculpas para Altman, iniciando uma parceria que o incluiria nos mais prestigiados trabalhos do diretor. O êxito do filme abriu caminhos para Hollywood olhar para a guerra com olhos menos patrióticos e mais críticos.
É fascinante como esse desprendimento que permeia todo o processo de construção é refletido no filme. Espaços atulhados de pessoas, uma voz falando em cima da outra, lugares apertados em planos fechados, cinismo e ridicularização. Sua própria narrativa vem em um formato episódico, trazendo diversos eventos escrachados que não necessariamente se relacionam um com o outro. É simbólico que a unidade militar escolhida seja a médica, lugar para onde é enviado tudo que deu errado na guerra. Em plena época da Guerra do Vietnã, MASH utilizava o cinismo cômico para cutucar a ferida tão aberta do belicismo estadunidense no momento
Se por uma lado, a obra exala uma certa liberdade em diversas instâncias, por outro, acaba reforçando algumas opressões que são pulsantes ainda hoje. Há um tratamento sexista na representação feminina, as posicionando como muleta, objeto sexual ou alvo de um deboche misógino. A personagem de Sally Kellerman, a major Hot Lips, reúne esses três aspectos e logo se torna objeto das mais diversas humilhações, motivada pelo seu questionamento sobre as atitudes autoritárias e desrespeitosas dos homens. Há defensores que falam sobre como isso é mais um comentário sobre o ethos militar. Em outros níveis de intensidade, o mesmo acontece em relação a aspectos racistas e homofóbicos.
São as contradições de uma época, bem abrigadas nas quase duas horas de filme. O legado de MASH é único. Oscar, Palma de Ouro, enorme arrecadação, caindo no gosto de críticos como Pauline Kael e Roger Ebert, além da abertura das portas, não parando por aí. Dois anos depois, MASH viraria uma série de televisão com direito a 11 temporadas e seu episódio final, exibido em 1983, teve 106 milhões de espectadores. Para comparar, o final de Friends teve 54 milhões e Seinfeld 76 milhões. Foi a maior audiência da TV americana até o Super Bowl de 2010.