No final de março uma curiosa minissérie documental estreou na Netflix e, em poucos dias, se tornou em dos assuntos mais falados nas redes sociais. Nos Estados Unidos, os números apontam que, até o momento, mais espectadores assistiram A Máfia dos Tigres do que a segunda temporada da cultuada série Stranger Things. A curiosidade se transformou em obsessão também aqui no Brasil e não é por menos. Se fosse necessário descrever a produção em apenas palavras-chaves, não poderiam faltar os termos: tentativa de assassinato; desaparecimento misterioso de milionário; poligamia; vício; eleição presidencial; estética kitsch; música country; fetiche por armas.
Os sete episódios - cada um com cerca de 40 minutos - são mais malucos que você poderia imaginar e, já a partir dos primeiros minutos, é impossível não se deixar levar pelo tóxico porém completamente fascinante universo dos donos de felinos.
Dirigido por Eric Goode e Rebeca Chaiklin, o documentário tem como título original The Tiger King - Muder, Mayhem and Madness (O Rei dos Tigres - Assassinato, Caos e Loucura) e como trama principal a investigação de como são as leis (ou a falta delas) em relação à compra e venda de tigres, leões, panteras e onças, só para citar alguns dos animais selvagens, e a rotina de proprietários de zoológicos particulares nos Estados Unidos.
Parece de fato surreal ter como pet uma leoa, mas no país onde muito se justifica com base na liberdade individual ter em casa dezenas de felinos não é totalmente anormal. Na verdade, um fato alarmante é compartilhado logo no início do primeiro episódio: existem hoje mais felinos em cativeiros só no Estados Unidos do que na natureza em todo mundo.
Mas A Máfia dos Tigres não é exatamente uma minissérie sobre a necessidade de preservar a vida selvagem, por mais esta preocupação seja o pano de fundo da produção. Todos os episódios se concentram em torno de duas figuras centrais: o excêntrico Joseph Allen Maldonado-Passage, a.k.a Joe Exotic, ex-dono do G.W. Zoo, em Oklahoma, e sua arqui-inimiga Carole Baskin, ativista e proprietária do santuário Big Cat Recue, na Flórida. Ambos se atacavam verbalmente e judicialmente há anos até que, em abril de 2019, Joe foi condenado a 22 anos de prisão por planejar o assassinato de Carole.
Nesta briga em que os egos são maiores que os felinos que todos dizem tanto amar, os fatos mais alucinantes vêm à tona, como por exemplo o do desaparecimento do ex-marido da ativista. Milionário que abandonou a família para se casar com Carole quando ela tinha apenas 20 anos e ele 42, Don Lewis desapareceu em 1997 sem deixar indícios.
Muitas teorias da conspiração foram criadas para justificar o sumiço e a mais conhecida delas é de que a própria Carole teria assassinado-o e jogado seu corpo - literalmente - ao tigres e leões. Absurdo? Talvez…Mas talvez nem tanto assim. É difícil dizer em que momento a realidade ultrapassa a ficção nessa história toda. Além do contexto incomum, muitas informações fornecidas pelas filhas de Don e antigos funcionários seus dão conta de que ele pretendia se divorciar de Carole e modificar o testamento.
Se a própria justiça americana não conseguiu chegar à um veredito claro sobre o que aconteceu com o milionário, Joe Exotic não tem a menor dúvida que ele foi morto pela esposa e esgota recursos financeiros e tempo para tentar provar sua certeza. O ódio que sente pela ativista é alimentado ainda por um sentimento de vitimismo que ele descarrega em vídeos grotescos nas redes sociais (com fortes acusações e ameaças pesadas embaladas por violência explícita) e clipes de uma estética bastante peculiar para suas músicas country.
Único é ainda pouco como adjetivo para descrever Joe Exotic. Em vídeo durante sua campanha presidencial em 2016, ele se apresenta de tal forma: “Primeiramente, não vou cortar meu cabelo, não vou mudar meu jeito de vestir, me recuso a usar um terno. Eu sou gay, durante a maior parte da minha vida tive dois namorados ao mesmo tempo e atualmente sou legalmente casado. Graças a Deus, finalmente é legal nos Estados Unidos. Tive experiências perversas no sexo, experimentei drogas na minha juventude e estou quebrado financeiramente (….).”
Obviamente ele não chegou nem perto de ser eleito, mas o fracasso político não o abateu e, em 2018, se candidatou para governador de Oklahoma, gastando dinheiro que não tinha na campanha e causando imensos atritos com seu sócio. Os namorados citados por Joe são John e Travis, dois jovens que também trabalhavam no zoológico e tinham uma relação aparentemente abusiva, em que era privados de certa liberdade mas não de metanfetamina.
A pitoresca relação de Joe Exotic com os felinos e funcionários é contada de uma forma muito parecida com outra minissérie documental de sucesso da Netflix, Wild Wild Country (2018), que retratou como o guru Osho construiu uma cidade inteira no Estados Unidos em 1981 e a transformou em seita. A cada episódio novas subtramas vão sendo apresentadas, com fatos reveladores e meias-verdades que deixam o espectador confuso em quem acreditar, além de uma riqueza de arquivo
de imagens. Há ainda outro vínculo possível de ser estabelecido entre as duas produções, a partir da figura de Bhagavan ‘Doc’ Antle, dono do Myrtle Beach Zoo. Acusado por uma ex-funcionária de comandar um pequeno culto particular e de escolher as roupas que suas esposas e namoradas devem vestir, ele, que morou em Yogaville nos anos 80, administra a propriedade de cima de um elefante.
A Máfia dos Tigres parece ter surgido da combinação de um documentário sobre vida animal da Discovery Chanel, de um reality show do canal E! e de um programa de investigação jornalística à la Linha Direta. Mas de alguma forma mágica, desenvolvida ao longo os cinco anos de trabalhos de Eric e Rebeca, o todo é harmonioso e equilibrado, tornando a produção um excelente entretenimento e ao mesmo tempo alerta sobre a ganância humana em relação à natureza.